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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

​O suicida arrepende-se no ar

09 fev, 2018 • Opinião de Henrique Raposo


O princípio do suicídio e da eutanásia está errado. Parte de uma ilusão. É um princípio que torna absoluto o que é momentâneo (a dor) enquanto torna relativo o que é absoluto (a vida), procurando solução naquilo é definitivo (a morte).

O seu nome é Ken Baldwin. Em 1985, tentou matar-se através do método mais belo e eficaz: saltar da Ponte Golden State. Empoleirou-se na grade, olhou para a água a 70 metros e quatro segundos de distância. Contou até dez. Respirou. Voltou a contar até dez e deixou-se cair. Assim que entrou em queda livre, Ken caiu também na lucidez: “percebi instantaneamente que tudo o que eu achava que era inflexível na minha vida era totalmente flexível – tudo menos o facto de ter saltado da ponte”.

Kevin Hines em 2000 repetiu o gesto e a sensação de arrependimento: “o que raio acabei eu de fazer? Eu não quero morrer!”. Não, não tive acesso ao Além. Conheço as história de Ken e Kevin, porque eles sobreviveram ao salto. São milagres com bilhete de identidade e personalidade jurídica; conheceram o inferno mas regressaram para contar como é.

O suicídio é o grande ângulo morto, porque é impossível saber o porquê daquele acto; é impossível fazer a autópsia mental do suicida. Estes raros sobreviventes tornam-se assim focos de luz apontados à escuridão. Através deles, ficamos a saber que, no momento em que acciona o suicídio, no momento em que salta, o suicida acciona também o arrependimento. Ele percebe logo ali, naquela fracção de segundo, que só há uma coisa sem solução, a morte, e que a dor que sentia até há uma fracção de segundo não era o fim do mundo. Ainda em pleno ar, ele percebe que a dor, física e sobretudo psíquica, que o levou ao parapeito da ponte não é definitiva; há um amanhã, há um futuro, há conversas para ter, há abraços para dar, há fruta pra comprar e banhos para dar. O salto é ao mesmo tempo o último momento do desespero e o primeiro momento da lucidez reencontrada.

A dor engana, bloqueia a noção de recomeço. Este poder de sedução da dor psicológica faz lembrar aquele filme omnisciente e omnipresente: o “Groundhog Day”; aquela tristeza mecanizada ilude-nos, faz-nos acreditar que todos os dias serão a repetição daquele dia de abismo, daquele dia negro que se repete semana após semana como se o tempo não avançasse. Diz-se que o “tempo cura tudo”, não é?

O problema é que este vórtice anula a própria paragem do tempo, ficamos com a sensação de estamos a viver o mesmo dia (e a mesma dor) vezes sem conta num loop sem fim. É assim que nasce a tentação do suicídio: se vai ser sempre assim, então mais vale acabar o jogo agora! Quando estamos neste abismo, não conseguimos perceber que aquela dor é momentânea e não eterna; não conseguimos imaginar que, mesmo que a melancolia seja eterna, conseguiremos um dia lidar com ela da mesma maneira que lidamos com outra doença ou com a naturalidade com que falávamos na infância com um amigo imaginário.

O carácter momentâneo da vontade de morrer é reforçado por outro facto há muito conhecido em São Francisco. As pessoas cujos suicídios são abortados na hora h nunca mais tentam o suicídio. Nos anos 70, um estudo seguiu o rasto de 515 pessoas que foram agarradas ou dissuadidas ali mesmo no abismo do tabuleiro da ponte: a esmagadora maioria (94%) ainda estava viva ou tinha tido morte natural. Isto prova que o suicídio tem muito de momentâneo. Como escrevi há dias no Expresso, resulta de um cruzamento entre duas linhas temporais, a linha temporal da melancolia do indivíduo e a linha temporal da acessibilidade aos meios para a morte (veneno/drogas, saltos, armas); quando estas duas linhas se cruzam, abre-se a janela de oportunidade do suicídio, uma “hora do demónio” que pode durar semanas ou meses. Portanto, a acessibilidade aos meios durante este período negro é um factor determinante. É por isso que os grandes suicidas da classe médica são os anestesistas: são eles que têm à mão de semear as injecções letais. Em sentido inverso, é por isso que a rede anti-suicídio está a ser colocada na Golden State.

O princípio do suicídio e da eutanásia está errado. Parte de uma ilusão. É um princípio que torna absoluto o que é momentâneo (a dor) enquanto torna relativo o que é absoluto (a vida), procurando solução naquilo é definitivo (a morte). Ninguém consegue travar o desespero do suicida. Essa dor vai sempre andar entre nós. E que ninguém pense que está imune ao seu contágio. Mas, se o suicida tem “direito” ao seu desespero, a sociedade não pode validar esse desespero; a sociedade não pode eternizar algo que é relativo e passível de recuperação; a sociedade não pode aceitar o desespero como argumento. No fundo, há que ser empático com o suicida mas implacável com a lógica do suicídio.

Comentários
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  • Rodrigo
    15 nov, 2024 Lisboa 12:27
    Com todo o respeito pelo excelente texto, mas quero deixar uma nota sobre este excerto: "Nos anos 70, um estudo seguiu o rasto de 515 pessoas que foram agarradas ou dissuadidas ali mesmo no abismo do tabuleiro da ponte: a esmagadora maioria (94%) ainda estava viva ou tinha tido morte natural. Isto prova que o suicídio tem muito de momentâneo." - não é possível analisar o suicídio analisando os seus números. É preciso uma análise casuística. O suicídio tem muito de momentâneo, mas esse estudo não o prova. O suicídio também tem muito de prolongado e duradouro. Acredita.
  • Agatha
    12 dez, 2022 Brasil 13:35
    Excelente texto, grande verdade. Verdade simples e que incomoda os rasos que se acham tão profundos, mas que tão somente compõem o mar de gente perdida em suas próprias complexidades criadas.
  • Ana
    15 fev, 2018 Porto 20:02
    Não percebi de todo porque se fala aqui de suicídio e eutanásia ao mesmo tempo, no mesmo texto... É que uma coisa nada tem a ver com a outra. "O tempo cura tudo"? Desde quando é que o tempo cura doenças terminais ou estados vegetativos que possam levar a uma decisão de eutanásia? O que é que a decisão de alguém terminar com a sua própria vida por ter problemas pessoais ou sofrer de uma depressão tem a ver com a eutanásia? Palavreado muito bonito como sempre, mas sem qualquer coerência ou lógica.
  • Paula
    10 fev, 2018 Amsterdam 22:13
    Voce nao sabe o que diz, esta a meter alhos com bogalhos. Deve de se enteirar nas leis oficiais da Europa sobre a eutenasia, nao tem nada a ver con soicidio como pretende dizer..... se quer saber mais contacte
  • Cláudio dos Anjos
    10 fev, 2018 Rio de Janeiro 20:55
    Ótimo texto!
  • Joana
    10 fev, 2018 Lisboa 16:28
    Uma das explicações apontadas para o suicídio é a depressão. Por exemplo, ao ler Henrique Raposo, um leitor poderá ficar deprimido, ao ponto de querer tentar cometer suicídio. Por isso, o melhor será evitar os textos de Henrique Raposo, pois estes representam um mal para a saúde e para a vida.
  • lelia
    10 fev, 2018 Lisboa 14:35
    Bem de boas intenções está o inferno cheio.A eutanásia é e será sempre um ato criminoso mesmo que legalizado.Quando a repressão por minorias elitistas atinge sucessivamente os civis surge a violência,a guerra e a morte por assassinato.Os movimentos anti-morte estão já no terreno e democracias atuais foram-se.Uma democracia que decreta a morte é sanguinária e extremista.Como as democracias se estão a passos largos em transformar em ditaduras consentidas estou espetante no resultado e reação.
  • Pedro Silva
    09 fev, 2018 Lisboa 20:11
    Não concordo nada com a opinião expressa por Henrique Raposo sobre este tema, do qual o próprio não tem competências para falar. Será Henrique Raposo médico? Psicólogo? Psiquiatra? É completamente banal, senão mesmo de um patético indescritível alguns comentadores que aqui vêm homenagear Henrique Raposo. Ou seja, não entendendo também nada sobre o tema, apenas vêm aqui a uma espécie de «beija-mão» de Henrique Raposo, como se esta figura tivesse algum nível literário. Os agradecimentos que alguns comentadores fazem a alguém tão medíocre, como é Henrique Raposo, demonstram a miséria de mentalidade que ainda existe na nossa sociedade.
  • Emanuel Teixeira
    09 fev, 2018 Sintra 17:20
    Comparar a eutanásia ao suicídio é intelectualmente desonesto! Os tipos que quiseram matar-se saltando da ponte, esses são suicidas... as pessoas que estão presas a uma cama em sofrimento, com dores irreversíveis, em que o sofrimento será a sua companhia até à morte, sem forças para andar, nem para saltar de uma ponte, esses não são suicidas. São pessoas que querem viver com dignidade e não aceitam vegetar em sofrimento. Claro que dá jeito a esta Direita ultramontana, da qual o HR é um dos seus exemplares, misturar suicídio e eutanásia para confundir a opinião publica.
  • mara
    09 fev, 2018 Portugal 15:08
    Sou contra a eutanásia ninguém tem o direito de dizer mate o meu pai ou a minha mãe, não sabemos se Deus tinha marcado o fim para essa hora, um dia dei autorização para o veterinário matar um gato, sofri imenso...quanto ao suicídio, um dia tive um frasco de comprimidos na mão para tomar, um miúdo, entrou na cozinha onde fora buscar a água, deu-me beijinhos esteve a falar comigo, a sua doçura fez-me esquecer os comprimidos, mas hoje penso tomá-los seriamente, é prefiro a dar esse prazer a que vai legislar essa barbaridade.