16 mar, 2018
Primeira: a morte não é um direito e matar não é um dever. Como é que chegámos ao ponto em que é necessário dizer esta evidência como se fosse uma novidade? Como é que as sociedades mais prósperas, mais pacificadas, mais saudáveis, mais protegidas e medicadas da história criam a ideia de que temos de dar o tiro de misericórdia em doentes? O tiro de misericórdia é um acto extraordinário de um estado de emergência; é o tipo de acção que se compreende em cenários de guerra civil, anarquia, faroeste; é o tipo de acção que não se compreende numa sociedade em paz e com amplo acesso a cuidados médicos. Não devíamos estar a discutir a eutanásia, mas sim o alargamento dos cuidados paliativos e a figura do “cuidador”. Se nós temos licença de paternidade quando os nossos filhos nascem, devíamos ter nova licença de paternidade para acompanhar os momentos finais dos nossos pais. Nas sociedades modernas que – bem ou mal – construímos, esta figura do “cuidador” é a forma mais humana e eficiente de evitar a tentação da eutanásia.
Segunda: afirmar que este é um tema que cabe em exclusivo à liberdade individual de cada um é confundir suicídio com eutanásia. O homem terá sempre a liberdade radical para se matar. De resto, a possibilidade do suicídio é a prova derradeira da nossa condição de seres criados para a liberdade consciente. Os slogans da eutanásia, “eu faço o que quiser com a minha vida” ou “sou eu quem escolhe a minha morte”, fazem sentido na defesa do suicídio, não fazem sentido na defesa da eutanásia. Ou seja, o homem que se atira da ponte está a fazer uso único e exclusivo da sua liberdade; o homem que entra no hospital para pedir que o matem está a fazer uso da liberdade e da moral dos outros. A diferença é radical. A sociedade nunca poderá erradicar esse cisne negro que é o suicídio. E, num certo sentido, ainda bem que não pode: é sinal de que somos seres livres. Mas, se o homem tem a liberdade para se matar, a sociedade tem o dever de ir contra essa liberdade, contra esse desejo momentâneo de morte. A sociedade não pode naturalizar ou romantizar o suicida; a sociedade não pode transformar o suicídio num acto social e médico, porque isso é a negação em termos da própria ideia de “sociedade”.
Terceira: a tese da eutanásia é libertária e autoritária ao mesmo tempo. Por um lado, diz-se que quem quer morrer tem esse direito, e ponto final, quem quer morrer deve ter direito a essa absoluta autonomia. Por outro lado, nega-se essa liberdade de escolha a quem tem de matar, é negada a objecção de consciência aos médicos. Exagero? No Journal of Medical Ethics, dois “especialistas” em bioética defenderam que os médicos não têm direito a negar a eutanásia a um doente a partir do momento em que essa possibilidade é consagrada em lei. Isto é um princípio do pensamento autoritário.
Quarta: é preciso não confundir o combate à distanásia com a imposição da eutanásia. A distanásia também é uma ilusão. A medicina não pode vencer a morte. Prolongar a vida de uma pessoa artificialmente não é uma vitória médica, é um sofrimento desnecessário, uma vanglória da técnica. Como dizia há dias Graça Franco aqui mesmo na Renascença, “para acabarmos com uma má prática médica, o encarniçamento terapêutico, basta bom senso. Não precisamos de leis e menos ainda da liberalização da eutanásia”.
Quinta: confunde-se aqui dignidade com autonomia corporal. Nós não somos apenas o nosso corpo. A nossa dignidade enquanto seres humanos não vem do corpo; os direitos humanos não existem por causa da perfeição ou imperfeição do corpo. Os defensores da eutanásia vêem na doença e na limitação corporal o fim de uma vida digna. Isso não faz sentido, basta olhar para Stephen Hawking e para todos as outras pessoas com deficiências que vivem uma vida digna e feliz. Dizer que há vidas que não merecem ser vividas devido a uma incapacidade física é o mesmo que dizer que temos de abortar todos os bebés diferentes e com trissomia 21 ou que não vale a pena construir alas de cuidados paliativos.
Sexta: também se confunde dignidade com consciência e razão. A dignidade do ser humano não advém da sua racionalidade mecânica ou mesmo da auto-consciência. Uma pessoa com debilidades mentais, sem consciência, sem racionalidade, sem capacidade para escolher, não deixa de ser uma vida inviolável. Tal como o deficiente físico, o deficiente mental é sagrado e inviolável. Usar a racionalidade consciente como único critério de definição de humanidade é o mesmo que defender que a vida de um deficiente mental, de uma pessoa em coma ou um bebé de meses não é inviolável. Exagero? Como se sabe, os animalistas como o líder do PAN dizem que há mais humanidade num macaco do que numa pessoa em coma. Como se sabe, há “especialistas” ou “cientistas” que não vêem diferenças entre um aborto nos primeiros dias de gestação e o infanticídio de um bebé de meses, visto que esse bebé de meses não tem consciência de si e não maneja a razão.
Sétima: a sexta razão é fundamental, porque na Bélgica e na Holanda doentes mentais estão a ser mortos através da eutanásia. Já estamos muito longe da ideia da eutanásia aplicada apenas a doentes oncológicos terminais ou a tetraplégicos. A eutanásia na Bélgica e Holanda é usada para matar pessoas com depressão ou ansiedade. Parece piada de humor negro, mas é a realidade. Como é que dezenas de doentes mentais (demência) já foram mortos através da eutanásia? Se a eutanásia só faz sentido enquanto decisão livre e consciente, como é que alguém que é inimputável por definição pode assinar um papel a pedir a sua própria morte? Como é que os psiquiatras, que deviam ser a primeira barreira contra o suicídio, validam estas mortas? Não é por acaso que as comissões que regem a eutanásia na Bélgica e na Holanda estão a passar por momentos de turbulência: há várias demissões, há pessoas a mudar de opinião perante os efeitos práticos da lei.