06 abr, 2018
Em Portugal, neste preciso momento, o suicídio está a aumentar nas zonas envelhecidas e interiores. É um incêndio silencioso e talvez mais grave do que os incêndios florestais. Pelo menos, mata mais gente. Não é difícil perceber a causa deste fenómeno sinistro e silenciado. É clássico o argumento do idoso que se suicida: “não quero dar trabalho aos meus filhos”, “não quero ser um fardo”. Julgo que toda a gente compreenderá esta angústia.
Ninguém gosta de ser um peso. Contudo, uma sociedade decente não pode legitimar esta angústia, tem de atacá-la, deslegitimá-la. Perceber não é o mesmo que validar. Ora, a legalização da eutanásia é a legitimação desta angústia. A liberalização da eutanásia sublinha e legitima o desalento dos idosos, é uma lei que lhes diz, sim, vós sois um fardo.
O raciocínio do “fardo” é um absurdo amoral que nos reduz à animalidade. Nós não vivemos em alcateias que abandonam ou expulsam os membros idosos ou velhos, que, por inerência, são pesos mortos. Nós somos seres morais de uma comunidade moral chamada família. Ninguém entra neste mundo como indivíduo isolado; nós ainda não nascemos em fábricas de úteros artificiais. Lá chegaremos, essa distopia aguarda-nos, mas ainda não estamos lá. Por enquanto, ainda nascemos através desta curiosidade arqueológica chamada mãe e somos criados durante vinte anos por uma família. Neste sentido, é um absurdo saltarmos de um começo orgânico para um final solitário. Se nascemos num contexto familiar, devemos morrer no mesmo contexto familiar. Quem por nós foi suportado deve suportar-nos na velhice.
Isto devia ser óbvio, mas não é. Porquê? Estamos a falar de dois lados da mesma moeda: cuidar de crianças, cuidar de idosos; educar os nossos filhos até à idade adulta, cuidar dos nossos pais desde o colapso da autonomia até à morte. E claro que esta moeda é um estorvo para o nosso ego, para a nossa ambição profissional, para o nosso “tempo de qualidade” privado (viagens, filmes, séries, concertos, restaurantes, ginásios, hóbis). A família, a infância de uns e a velhice de outros, é o grande desorganizador das nossas vidinhas ultra planificadas. Sucede porém que a moral passa precisamente por lidar com este caos familiar; a decência está em fazer aquilo que os outros precisam, não aquilo que nós queremos. Repare-se que não estou a falar de utopia, de salvar a humanidade, de bondade abstracta, de laços e gatinhos, de hashtags sobre as crianças da Síria – coisas vagas e distantes. Estou a falar das nossas pessoas, os nossos filhos e os nossos velhos.
Sucede que estas duas frases “nossos filhos” e “nossos velhos” são cada vez mais raras. O egoísmo da minha geração está aí à vista de todos: taxas de divórcio altas, taxas de natalidade baixas que comprometem o futuro da sociedade, velhos sozinhos que se matam debaixo do silêncio das narrativas do lifestyle. As duas coisas estão ligadas: a geração que não quer o fardo da paternidade é a geração que encolhe os ombros à eutanásia dos mais velhos. Contra isto, digo com todas as letras: espero ser um fardo para as minhas filhas.
PS: título inspirado por “I want to burden my loved ones”, Gilbert Meilaender (First Things).