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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Quero ser um fardo para as minhas filhas

06 abr, 2018 • Opinião de Henrique Raposo


A geração que não quer o fardo da paternidade é a geração que encolhe os ombros à eutanásia dos mais velhos. Contra isto, digo com todas as letras: espero ser um fardo para as minhas filhas.

Em Portugal, neste preciso momento, o suicídio está a aumentar nas zonas envelhecidas e interiores. É um incêndio silencioso e talvez mais grave do que os incêndios florestais. Pelo menos, mata mais gente. Não é difícil perceber a causa deste fenómeno sinistro e silenciado. É clássico o argumento do idoso que se suicida: “não quero dar trabalho aos meus filhos”, “não quero ser um fardo”. Julgo que toda a gente compreenderá esta angústia.

Ninguém gosta de ser um peso. Contudo, uma sociedade decente não pode legitimar esta angústia, tem de atacá-la, deslegitimá-la. Perceber não é o mesmo que validar. Ora, a legalização da eutanásia é a legitimação desta angústia. A liberalização da eutanásia sublinha e legitima o desalento dos idosos, é uma lei que lhes diz, sim, vós sois um fardo.

O raciocínio do “fardo” é um absurdo amoral que nos reduz à animalidade. Nós não vivemos em alcateias que abandonam ou expulsam os membros idosos ou velhos, que, por inerência, são pesos mortos. Nós somos seres morais de uma comunidade moral chamada família. Ninguém entra neste mundo como indivíduo isolado; nós ainda não nascemos em fábricas de úteros artificiais. Lá chegaremos, essa distopia aguarda-nos, mas ainda não estamos lá. Por enquanto, ainda nascemos através desta curiosidade arqueológica chamada mãe e somos criados durante vinte anos por uma família. Neste sentido, é um absurdo saltarmos de um começo orgânico para um final solitário. Se nascemos num contexto familiar, devemos morrer no mesmo contexto familiar. Quem por nós foi suportado deve suportar-nos na velhice.

Isto devia ser óbvio, mas não é. Porquê? Estamos a falar de dois lados da mesma moeda: cuidar de crianças, cuidar de idosos; educar os nossos filhos até à idade adulta, cuidar dos nossos pais desde o colapso da autonomia até à morte. E claro que esta moeda é um estorvo para o nosso ego, para a nossa ambição profissional, para o nosso “tempo de qualidade” privado (viagens, filmes, séries, concertos, restaurantes, ginásios, hóbis). A família, a infância de uns e a velhice de outros, é o grande desorganizador das nossas vidinhas ultra planificadas. Sucede porém que a moral passa precisamente por lidar com este caos familiar; a decência está em fazer aquilo que os outros precisam, não aquilo que nós queremos. Repare-se que não estou a falar de utopia, de salvar a humanidade, de bondade abstracta, de laços e gatinhos, de hashtags sobre as crianças da Síria – coisas vagas e distantes. Estou a falar das nossas pessoas, os nossos filhos e os nossos velhos.

Sucede que estas duas frases “nossos filhos” e “nossos velhos” são cada vez mais raras. O egoísmo da minha geração está aí à vista de todos: taxas de divórcio altas, taxas de natalidade baixas que comprometem o futuro da sociedade, velhos sozinhos que se matam debaixo do silêncio das narrativas do lifestyle. As duas coisas estão ligadas: a geração que não quer o fardo da paternidade é a geração que encolhe os ombros à eutanásia dos mais velhos. Contra isto, digo com todas as letras: espero ser um fardo para as minhas filhas.

PS: título inspirado por “I want to burden my loved ones”, Gilbert Meilaender (First Things).

Comentários
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  • Vera
    17 abr, 2018 Palmela 16:16
    Olá, há dois dias, houve uma frase que eu disse para os meus filhos: parece que chega a altura, que temos que passar um mau bocado na vida, para conhecermos aqueles que temos à nossa volta! Porque eu passei, por dias muito difíceis! mas, agora acho que vale a pena ter dois filhos por perto... sinceramente custou-me muito, ver certas coisas que eles tiveram que fazer, que nunca tinham feito antes, porque eram trabalhos domésticos, que só a mim me pertenciam, foi uma surpresa! foi duro! mas foi uma grande surpresa! por isso repito a frase: 'parece que na vida, de vez em quando, temos que passar por um mau bocado, para sabermos quem temos à nossa volta!' Se é este modo, que Deus tem, para nos mostrar quem realmente somos... Que seja feita a Sua vontade.
  • João Lopes
    09 abr, 2018 Viseu 14:48
    Excelente artigo de Henrique Raposo. A defesa da vida, em todas as circunstâncias, é a defesa da humanidade. Os promotores da cultura da morte − aborto e eutanásia − atentam contra a dignidade da pessoa humana: são os "bárbaros" e os "monstros" destes tempos… A eutanásia e o suicídio assistido são diferentes formas de matar. Os médicos e os enfermeiros existem para defender a vida humana e não para matar nem serem cúmplices do crime de outros...
  • Nona
    07 abr, 2018 lisboa 16:12
    Houve geração sandwiche ,cuidador dos mais velhos e educar,cuidar dos mais novos-filhos.Éra algo natural nesta geração e o reconhecimento de que eramos um resultado de quem nos criou/educou e um dever carinhoso de preparar os descendentes para a vida.Hoje a estruturação do mercado de trabalho,destruturaçao das famílias, levou á quebra demográfica e impossibilidade de ser cuidador direto.A eutanásia legal ou não, é crime e homicídio,caberá ao estado criar alternativas.Está claro que é mais fácil e barato matar do que cuidar em geral dos sofredores.Há neste momento Séniores que com medo da Eutanásia se transferem para Países onde nao é permitida.Teremos em Portugal fuga dos reformados estrangeiros para outros destinos não assassinos.Mas para os herdeiros dos que fizeram varrimento dos inimigos civis aos milhões a Eutanásia é a continuação da mesma ação nestes tempos.As cadeias estão cheias e assassinos, haverá sempre ,para efeitos economicistas seria lógico implementar novamente a PENA DE MORTE.
  • António Simões
    07 abr, 2018 Lisboa 15:46
    Não há mediocridade maior do que ler e gostar das crónicas de Henrique Raposo. Pior que esta mediocridade, é a chamada «graxa» que comentadores, como Domingos Simões, dão ao autor. Quando se felicita um mau autor de crónicas (como até as suas meninas... e porque não os animais domésticos que Henrique Raposo tem em sua casa), chega-se ao limite do patético e do triste.
  • Anónimo
    06 abr, 2018 22:04
    Coitadas das filhas dele por o terem como pai.
  • Domingos Simões
    06 abr, 2018 Caldas da Rainha 16:22
    Dá mais sabor à vida ler Henrique Raposo, um lutador lúcido e profundo por valores humanos e supra humanos. Com estas palavras presto homenagem aos seus ascendentes, aos seus educadores em geral e todas as pessoas que foram uma referência na sua vida. Felicito o comunicador corajoso e sem tabús; felicito o homem que é uma das duas colunas de suporte da instituição familiar de que é parte; felicito a outra coluna de suporte dessa mesma instituição familiar; felicito as suas meninas. Dou graças a Deus. Bem hajam, sempre!
  • Geraldes Lino
    06 abr, 2018 Lisboa 14:26
    O seu título foi inspirado ou copiado do título de Gilbert Meilaender? Uma coisa é a inspiração; a outra é a cópia vulgar que se costuma fazer por incapacidade ou desespero criativo. Depois, o senhor já veio aqui insultar aqueles que optam pelo suicídio e agora defende-os, porque acha que aqueles que optam por este fim fazem-no por angústia e porque «não querem ser um fardo». Ou seja, não é a sociedade ou as políticas conduzidas pela sociedade que levam uma pessoa à angústia e ao suicídio. Na sua cabeça, alguém que escolhe o suicídio é porque «não quer ser um fardo» e está arrumada a questão. O assunto nem merece mais debate. Basta cinco parágrafos e um «post-scriptum» e fica tudo arrematado.
  • Emanuel Teixeira
    06 abr, 2018 Lisboa 13:52
    Que argumentário mais idiota para se opor à eutanásia! A despenalização da morte medicamente assistida visa dar a opção de acabar com o sofrimento aos doentes terminais, que estão condenados a sofrer até ao fim da vida. Nada tem a ver com a assistência aos idosos. Já agora, e para ser completamente idiota, também podia dizer que a eutanásia ´pode servir para agilizar os divórcios!
  • me
    06 abr, 2018 12:11
    Saiba que nos «países baixos» (holanda e bélgica) se mata gente sem 'autorização'. Novos e velhos. Saiba que neste «baixos», neste século xxi, os fizeram as leis da morte foram os filhos da geração rica, criados no pós-guerra à conta do investimento (plano marshall) para evitar o comunismo. Com esse dinheiro se puseram as indústrias a laborar, evitando a pobreza e (claro) o comunismo. Os agora velhos, 'ganharam a vida' bem mas, num arrobo de estupidez, quando os filhos atingiam a maturidade (18 anos) corriam-nos de casa para que fossem fazer a sua vida. Lembra-se qual o país que serviu de cenário para 'clockwork orange'? Não há bem que sempre dure, nem mal que perdure. Acredito eu, com 75 anos.
  • Maria Manuela Nunes das Neves
    06 abr, 2018 11:21
    E quando os filhos não querem saber dos pais enquanto eles ainda são relativamente novos? Tenho 3 filhas e é o mesmo que não ter. E a lei portuguesa obriga-me a deixar-lhes o que tiver na altura embora nada mereçam.