20 abr, 2018
Na luta contra a eutanásia, um dos piores erros que os cristãos podem cometer é a defesa do exacto oposto: a distanásia, o encarniçamento terapêutico, o finca-pé emotivo e comovente perante a morte. Tragicamente, foi isso que aconteceu no caso do bebé Charlie Gard e é isso que está a acontecer no caso de Alfie Evans, um bebé de dois anos que está internado em Liverpool com uma doença degenerativa sem diagnóstico e sem cura. Este bebé está no ângulo morto do conhecimento humano; só Deus compreende o que ali se passa. Evans encontra-se num estado vegetativo e só está mecanicamente vivo porque o ligaram a um suporte artificial de vida; sem essa máquina, já teria encontrado a morte natural. Passados dois anos, os médicos querem desligar a máquina. Os pais, ao invés, querem o encarniçamento terapêutico e, como são católicos, invocam o fantasma da eutanásia ao mesmo tempo que pedem a transferência da criança para um hospital do Vaticano, que já garantiu a perpetuação artificial desta vida. O hospital de Liverpool e os tribunais ingleses recusam este pedido de transferência.
É preciso coragem para dizer que os médicos e os tribunais têm razão neste caso. O Leviatã nem sempre é o vilão. Até devemos ter coragem para dizer que a Igreja comete um erro quando se intromete nesta questão. Com esta atitude, o tal hospital do Vaticano fomenta a emoção da distanásia, uma emoção que, apesar de ser comovente, parte de pressupostos errados. A Igreja erra, porque está a transmitir a ideia de que estamos perante um caso de eutanásia. Ora, a eutanásia implica um acto que mata o doente, é uma antecipação humana e artificial da morte, é a recusa da morte natural. O que está aqui em causa é precisamente o oposto: ao manterem a máquina ligada, os pais da criança estão a entrar na distanásia, que também devia ser criticada pela igreja. Aliás, na primeira instância, a diocese de Liverpool tomou a posição correcta: distanciou-se, não se intrometeu, não fez desta tragédia uma bandeira fácil (e errada) da luta contra a eutanásia. Repare-se que não estou a defender a retirada da técnica e da medicina. Os bebés prematuros morriam há cem ou cinquenta anos; hoje sobrevivem graças a máquinas que os auxiliam até terem o tamanho e as capacidades normais. No caso do bebé Alfie Evans, não estamos perante um cenário em que a máquina auxilia a vida, mas sim perante um caso em que a máquina é a vida. Compreendo a emoção dos pais, percebo o seu estado de negação, não critico nem julgo. Não sei como reagiria numa situação semelhante. Mas já não compreendo a cedência do Vaticano a esta emoção que baralha conceitos, que confunde valores e que nos faz perder força no combate essencial (eutanásia). A igreja não está neste mundo para dizer aquilo que queremos ouvir, nem para entrar nos discursos fáceis e comoventes. Entre outras coisas, a igreja está neste mundo para nos ajudar a enfrentar a dor e a perda. Quando um católico não vê as coisas com clareza, a tarefa da igreja não é reforçar a miopia emocional do crente. A sua tarefa é fornecer uma lente nova que restitua a clareza. Pode ser uma lente difícil, mas é a lente certa.
Se somos contra a eutanásia porque se trata de uma imposição artificial da vontade humana sobre a morte natural, porque é que aqui não aceitamos a morte natural? Porque é que aqui patrocinamos um artifício humano que fura e profana o corpo de um bebé indefeso só para depois gritarmos com bravata “a vida triunfa”? Não faz sentido. Ser católico também implica aceitar a morte, mesmo quando se trata de uma criança. Essa aceitação é dura, porque temos de nos confrontar com o mistério do mal e com o silêncio de Deus perante esse mistério. Podemos até passar pelo desespero de Job, porquê Senhor?, porque é que aquele bebé nem sequer começou a viver?, como é que permites esta injustiça no próprio tecido da Criação? Mas, no final, temos de acabar na humildade de Eclesiastes: Senhor, entrego-te a minha dor e a minha revolta. Perante tragédias como as de Evans e Gard, a Igreja devia usar este triunfo da Bíblia, e não o triunfo da máquina hospital. Até porque o culto dessa máquina é paradoxalmente um das armas da cultura que legitima a eutanásia.