28 mai, 2018
I.
Em Portugal, a discussão sobre a eutanásia tem sido colocada ao contrário. Os defensores do sim, apoiados pela habitual onda mediática, consideram que uma pessoa tem liberdade para fazer o que quiser com a sua vida, logo tem o direito de pedir a morte ao hospital, como se a morte fosse uma operação médica como outra qualquer, como se “morte”, “morrer” e “matar” fossem meros conceitos técnicos ou médicos como “remover” ou “aspirar”. Mesmo que isto fosse verdade, mesmo que tivéssemos de aceitar que a morte é um direito, o argumento da liberdade esbarraria sempre no ponto central: o que interessa aqui não é quem quer morrer, mas sim quem se vê forçado a matar – os médicos e enfermeiros. O que interessa aqui não é o alegado direito a morrer, mas sim o dever de matar, que não pode existir. Por outras palavras, invocar o argumento da liberdade na eutanásia é falacioso, porque a eutanásia não é um suicídio normal. “Eu faço o que quiser com a minha vida” ou “sou eu quem escolhe a hora e o modo da minha morte” são argumentos para a defesa do suicídio, que é um acto total e radical de liberdade. A eutanásia não pode ser defendida nestes termos, porque a decisão final depende de um conjunto de médicos que tem de validar e executar a morte pedida. Ou seja, a eutanásia não é um acto de liberdade. Pelo contrário, é a usurpação da liberdade do outros (dos médicos e enfermeiros) em nome de um alegado direito à morte.
Se não existe o dever de matar, também não existe o direito de morrer. E aquilo que está em jogo na eutanásia e no suicídio assistido é a transformação do suicídio num valor colectivo decorrente de um alegado direito a morrer. Um direito que importa matar à nascença. O ser humano terá sempre a liberdade radical para se matar, não pode é ter o direito de desviar o ónus do seu suicídio para outra pessoa ou para uma entidade colectiva e desresponsabilizadora. Ou seja, eu terei sempre a liberdade para me matar, não tenho é o direito de chamar os outros para o meu suicídio, não tenho o direito de exigir que me matem. Para me matar, eu terei sempre de fazer algo na solidão absoluta da liberdade: congregar coragem para o salto final. Ora, a eutanásia e o suicídio assistido são formas de evitar essa solidão e essa coragem inerentes à liberdade; são formas de desviar para terceiros o ónus e a coragem do acto. Pior: são formas de transformar um acto moral num acto médico e técnico isento de opróbrio. Não, o suicídio não pode ser um acto médico ou social. Um suicídio executado por terceiros é uma contradição nos termos, porque não existe um direito a morrer. Isto é verdade na eutanásia e no suicídio assistido, e continua a ser verdade no suicídio clássico. Se virmos uma pessoa no cimo da ponte prestes a dar o salto para o abismo, o nosso impulso moral é agarrá-la. Se virmos um homem no topo do edifício na pose clássica do suicídio, o nosso impulso é demovê-lo, o nosso dever é ir contra a sua vontade, contra a sua liberdade. Tal como escrevi no meu “Alentejo Prometido”, mostrar empatia por um suicídio em concreto (ou por todos) não determina a criação de um direito ao suicídio.
Além da falácia do direito a morrer e do dever de matar, existe uma terceira falha no argumento da liberdade aplicada à eutanásia: quem pede para morrer dificilmente está na posse do seu livre arbítrio ou, no mínimo, a dor já lhe diminuiu o perímetro da liberdade. Será que tem validade uma decisão tomada debaixo da coação da dor? Será que é consciente uma escolha feita no limite da dor? Duvido. E, mesmo que seja consciente, cabe à sociedade não validar esse desespero. O desespero do acamado que pede eutanásia tem a mesma validade moral do desespero do suicida normal no cimo da ponte. O nosso dever é recusar o seu desespero. Se no cimo da ponte temos de tentar agarrá-lo, na cama do hospital temos o dever de lhe dar o melhor dos cuidados paliativos e da medicina da dor.
II.
Em Portugal, a discussão tem sido colocada ao contrário noutro sentido: a maioria dos portugueses ainda não sabe o que se passa na Holanda e na Bélgica, dois países que legalizaram a eutanásia. O quadro é dramático, para usar um eufemismo. Estamos a falar de milhares e milhares de eutanásias por ano. Estamos a falar do assassínio – sim, assassínio – de velhos com demência. Se são dementes, como é que podem assinar o consentimento? Estamos a falar do assassínio – sim, assassínio – de jovens com depressão e simplesmente cansados de viver. Estamos a falar do assassínio – sim, assassínio – de pessoas cegas, por exemplo. O quadro não é dramático, é abjecto: a cegueira e a depressão são usadas como justificações legítimas para a eutanásia. É este, de resto, o grande perigo de uma lei geral da eutanásia: abre um alçapão por onde tudo pode entrar. O que é “sofrimento insuportável”? E quem decide o que é “sofrimento insuportável”? É por isso que a eutanásia está a servir para centenas e centenas de famílias despacharem os seus velhos com demência ou com outras incapacidades. É por isso que jovens com depressão entram nos hospitais e são mortas porque estão com depressão. Ainda hoje há gente em Portugal que não acredita naquilo que estou aqui a dizer, mas os deputados que votarão não têm o luxo da negação. Os deputados de Portugal não têm o luxo de pactuar com um conceito de direitos humanos que assenta apenas na autonomia e na perfeição corporal ou mental. Os defensores radicais da eutanásia assumem que uma vida humana só pode ser vivida com total autonomia corporal ou mental; acham que a nossa dignidade está dependente da saúde e da autonomia corporal ou até mental. Sucede que a sacralidade da vida humana não depende da autonomia corporal ou sequer da consciência mental. Um bebé ou um deficiente mental não têm consciência kantiana, mas não deixam de ser sagrados. O mesmo acontece com os portadores de deficiências físicas, da trissomia até à surdez. Na Holanda e na Bélgica, quem cai na cegueira ou na depressão é convidado à desistência porque já não é autónomo ou porque tem algo incurável. Exagero? Leiam o que se passa na Holanda e Bélgica. Já não têm o luxo da negação.