09 nov, 2018
“Eu, Daniel Blake” é um filme que mostra a pobreza de um operário branco da Inglaterra do nosso tempo. “Fences” é um filme que mostra a pobreza de um trabalhador americano negro de meados do século XX, Troy Maxson. O facto de Daniel e Troy não partilharem a cor de pele, o país e a época torna-se irrelevante perante a miséria partilhada por ambos. Na miséria somos todos iguais. Na miséria somos todos irmãos em dificuldade.
É importante recordar esta velha ideia, porque há forças à esquerda e à direita que parecem apostadas em esquecer a irmandade humana que a pobreza exige de nós. À esquerda, o culto identitário do politicamente correcto dividiu a sociedade nas linhas rácicas, para não dizer racistas. Os radicais do politicamente correcto chegam ao ponto de dizer que um branco, mesmo um branco pobre, nunca poderá sentir empatia pelas dores do negro, a verdadeira vítima.
Para estes activistas e intelectuais, a empatia humana está dividida por cercas. Lamento, mas a lógica dos muros começou muito antes de Trump, e começou na esquerda que diz que o branco pobre não é bem uma vítima, porque é branco. Na contra-resposta da direita, há agora uma nova vaga de nacionalismo branco, que responde ao politicamente correcto na mesma moeda reaccionária e quase biológica: o que interessa é a tribo étnica em que se nasce; é como se o ser humano fosse tão determinado pela biologia como uma árvore ou animal, é como se estivéssemos destinados a abandonar a Graça em nome da natureza.
As duas grandes baixas desta cultura identitária e rácica têm sido a república (a ideia de que homens diferentes podem partilhar o mesmo chão patriótico) e a preocupação com a pobreza. A sociedade e os média deixaram de pensar a sociedade na linha da pobreza, preferindo outras linhas como a cor de pele e o sexo. É importante voltarmos à linha da miséria, porque está ali a nossa salvação. As divisões na sociedade são inevitáveis, mas há divisões e divisões. Se nos dividimos na cor de pele, não há unidade possível. Se nos dividimos na linha da classe social (pobreza), a comunhão já é possível porque a fome e o frio são partilhados por brancos, negros, castanhos, hetero, gay, homens ou mulheres. Na pobreza somos todos iguais.
Não é por acaso que o Evangelho fala tanto da pobreza. Jesus não está interessado em saber se aquela pessoa é judia, pagã ou samaritana. A parábola do bom samaritano (Lc 10, 29-37) é, aliás, um bom exemplo. Os samaritanos, naquele contexto, eram “mulatos” olhados de lado pelos judeus puro sangue (puro sangue na biologia e na teologia). Ora, Jesus dá o exemplo do samaritano precisamente para nos elevar acima dos cultos tribais e das presunções de pureza: não interessa o teu sangue e a tua pele (a prisão da biologia que nos separa), não interessa a tua pureza teológica (que pode ser uma forma de arrogância farisaica), o que interessa é o que fazes para ajudar os pobres (uma escolha moral que nos aproxima). O samaritano salvou um miserável que o levita e o sacerdote, os puros, nem sequer tinham visto. A miséria torna-se muitas vezes invisível aos olhos dos detentores do poder, quer do poder imaterial (o levita), quer do poder material. É também por isso que Jesus é tão duro com os ricos. Quando usa a linguagem simbólica para dizer “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino” (Mt 19, 24), Jesus não está a dizer que o rico está condenado à partida; está a dizer, isso sim, que o rico tem de se esforçar mais. Construir neste mundo um chão comum remotamente parecido ao Reino é uma meta que depende da humildade do rico. Em primeiro lugar, ele tem de estar consciente da sua condição privilegiada. Não tem de sentir culpa, mas tem de estar ciente de que o seu privilégio não é uma condição natural como o vento que passa. Em segundo lugar, tem de saber que a sociedade justa é aquela onde o rico pratica a arte do desprendimento.
O ocidente está mesmo num beco sem saída, talvez o pior desde a II Guerra. Tudo à nossa volta cheira e soa ao período anterior a 1914. Sair deste buraco implicará sempre um regresso à pobreza enquanto variável central dos cálculos morais e políticos.
Só a pobreza nos pode salvar. O pobre branco tem de compreender que tem mais em comum com o pobre negro do que com o branco rico. O pobre negro tem de fazer o mesmo esforço. Daniel Black e Troy Maxson sentem a mesma ansiedade, que é universal e intemporal. No lado oposto, o rico encantado pelas luzes da Websummit tem de compreender que, se não devolver parte dessa riqueza à sociedade, acabará por perder tudo num tufão de revolta gerado pelo ressentimento dos deserdados. “Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifam os vossos campos está a clamar” (Tg 5, 4).