30 nov, 2018
Meu caro leitor, gostava de voltar ao tema: ao invés da rapariga, o rapaz é educado para ser uma pessoa pela metade. Frases como “homem que é homem não chora” continuam a criar um modelo de rapaz que será um homem depressivo, silencioso e violento. Os flagelos da masculinidade (violência doméstica, assédio sexual, suicídio) nascem neste espartilho que cria dentro de cada rapaz uma guerra civil entre a sua masculinidade e a sua humanidade.
Mas de onde vem esta ideia de que o homem não tem direito a sentir e expressar dor? Dos pilares da nossa civilização? Será que o evangelho, os primeiros livros do cristianismo ou as grandes sagas gregas têm como modelos de masculinidade homens que não mostram as suas emoções? Não. Pelo contrário, os heróis gregos e cristãos passam a vida a chorar. Na “Odisseia”, Odisseu (Ulisses) tem sempre uma lágrima no canto do olho; chora quando pensa em Ítaca, Penélope, Telémaco ou nos seus homens comidos pelo Ciclope; Homero conduz o protótipo do aventureiro por um caminho de franqueza emocional. Portanto, na palavra “homérico” não devemos ver apenas força, vitalidade e coragem física, também devemos ver a coragem emocional necessária para mostrar fraquezas e fragilidades. Homem que é homem chora bastante, segundo Homero. No campo cristão, a comoção masculina também é uma marca. Naquele que é porventura o primeiro grande livro da cristandade, “Confissões”, Santo Agostinho revela-se um doutor da igreja e do choro. Se “Confissões” é um livro que nos educa moralmente, então é preciso dizer que o choro faz parte dessa educação. Não se trata de um choro público e lamechas, mas do choro privado que nasce na presença de quem nos ouve sem julgar, a mulher, o marido, o amigo, o padre, Jesus, Deus.
Livro de Paulo DuarteÉ neste contexto que gostava de introduzir o magistério de Paulo Duarte, sj, que acaba de publicar um livro, “Deus como Tu”, que reúne as suas reflexões. Estes textos contam episódios da vida deste padre jesuíta que vive no pó e caos do mundo, não no sossego do templo ou dos claustros; um padre que vive na verdadeira evangelização feita nas fronteiras físicas e mentais da sociedade e do próprio catolicismo. Não estava o relutante Zaqueu no topo da figueira brava (Lc 19, 1-10)? Não era a mulher do milagre uma gentia siro-fenícia (Mc 7, 25-30)? Não está Rute, a estrangeira, a impura, a pagã, a moabita, na linhagem que vai dar a Jesus (Rt, 2, 10)? Com este espírito paulino, Paulo Duarte procura precisamente territórios considerados “impuros” pelos legalistas tão criticados por Jesus. E este desafio à pureza farisaica alarga-se a outras purezas, a começar precisamente na "pureza" masculina. Neste ponto, importa alargar o currículo do autor: além de padre, Paulo Duarte é professor, convive com dezenas e dezenas de rapazes. Em inúmeros episódios que funcionam como parábolas, o livro de Paulo Duarte mostra quase em directo os efeitos devastadores que a frase "um homem não chora" tem nos rapazes. É uma mutilação moral. Numa altura em que se questiona tanto o papel da igreja na educação de jovens, estes textos mostram o caminho. Vemos ao vivo e a cores o papel do padre-professor que acompanha a caminhada dos rapazes do sofrimento silencioso até à redenção pessoal, familiar e até comunitária. Algo que só acontece quando a máscara do valentão cai por terra.
Não, não pensem que Paulo Duarte está a educar criaturas lamechas que choram a cada segundo. Será que Homero queria criar homens alquebrados quando colocou Odisseu a chorar em cada canto? Será que Santo Agostinho queria criar piegas quando fez as suas “Confissões”? Não, Paulo Duarte não está a criar lamechas, está a educar homens, homens francos, homens que com a franqueza necessária para – num dado momento – expulsarem através do choro a fraqueza que os oprime. Melville dizia que temos de nomear o mal: assim que o nomeamos, ele deixa de ser tão opressivo. Parece fácil, sim, mas é porventura a coisa mais difícil de dizer ou fazer. “É de valentes a coragem de olhar para a fragilidade e ferida”, diz Paulo Duarte a um rapaz que encontra o alívio da confissão.
Não, meu caro leitor, a fortaleza masculina não se faz na recusa do fluxo das lágrimas; esse fluxo é imparável. A menina é educada a mostrá-lo com naturalidade. O rapaz, ao invés, é educado a escondê-lo através de um dique. Sucede que o colapso desse dique é só uma questão de tempo. Esse colapso tem dois nomes, suicídio (uma história masculina) ou violência sexual (outra história masculina). A educação moral do rapaz passa então por conhecer o momento certo para abrir as comportas do dique. Não é um pormenor, é uma educação que salva vidas, deles e delas.