28 dez, 2018
Quando dois ou mais irmãos trocam abraços ou beijos na rua ou no parque, julgo que a maioria das pessoas tende a ver naqueles gestos uma manifestação de afecto natural. Ai, que amores! As crianças são mesmo o melhor do mundo! É um erro. Se aqueles irmãos ou irmãs estão a trocar afectos como quem troca cromos da Panini, então isso quer dizer que os pais trabalharam muitíssimo. O melhor do mundo não é a natureza alegadamente boa das crianças, mas sim a persistência dos pais que educam as crianças para o amor. E, se o amor é um trabalho, o amor entre irmãos é uma carga de trabalhos.
Sim, o amor entre irmãos é um trabalho, uma educação, uma escolha racional do livre arbítrio. No livro que nos deu o livre arbítrio e a responsabilidade individual, a Bíblia, nunca deixo de me surpreender com a centralidade do amor e desamor entre irmãos. De José no Egipto à parábola do filho pródigo, a Bíblia diz-nos que o amor entre irmãos não é algo fluído e orgânico como o desabrochar de uma flor, é algo mecânico, escolhido e trabalhado como as rodas e roldanas de um relógio. Amar um irmão até se pode transformar numa segunda natureza, sim, mas a construção desse segundo instinto, camada após camada, leva anos ou décadas. A bondade é como aquelas camadas de tinta velha dos ateliers dos pintores, ou como as camadas de serradura numa carpintaria, camada após camada de tempo, camada após camada de tentativa e erro até chegarmos ao amor pelo nosso maior rival, o irmão ou irmã.
É por isso que fico assustado com esta sociedade de filhos únicos que criámos nas últimas duas décadas e que continuamos a criar. É que uma sociedade de filhos únicos é uma sociedade de intolerância. Ao analisar a intolerância e clima de censura e autocensura das universidades americanas, o psicólogo social Jonathan Haidt (The Coddling of the American Mind) vê a causa do problema num ponto ainda mais profundo do que o mero politicamente correcto. Os jovens universitários de hoje, diz Haidt, já foram criados num clima hiper-protegido, sempre vigiado por adultos, muitas vezes sem irmãos e sem brincadeiras de rua. Haidt chama-lhe a “geração floco de neve”, uma geração que é incapaz de dialogar e trocar ideias porque vê uma ofensa no mais leve desacordo. Tornaram-se jovens adultos intolerantes, porque foram crianças solitárias que não aprenderam a socializar, porque não tiveram a grande educação moral: ter irmãos. Ter irmãos força à negociação permanente; a tal coabitação com o “outro” faz parte do próprio ar que se respira. Sem surpresa, a nossa sociedade de filhos únicos tem sido uma sociedade sociedade de bullying na escola e de intolerância na vida adulta.