08 mar, 2019
Quando era miúdo, a paisagem das manhãs de sábado e domingo era sempre a mesma: os homens lavavam os carros com um afinco de criada oitocentista. A água das lavagens escorria ruas abaixo em pequenos regueiros de água suja e espuma, cheiros de asseio forçado pairavam no ar. Eles começavam por bater os tapetes. Aspiravam os estofos e o chão dos bólides. De seguida, atiravam meia garrafa de lava-tudo de lavanda para um balde com água. Rodeados pela inevitável espuma, esfregavam as carroçarias, as luzes, as jantes. Passavam a manhã neste aprumo automobilístico enquanto as colunas dos carros poluíam os ouvidos alheios com Quim Barreiros (os mais velhos) ou techno (os mais novos). Décadas depois, a cena mudou no espaço e no tempo. Já não é na rua e à porta de casa, é nas bombas de gasolina; já não é de manhã, é sobretudo à tarde. Mas a essência permanece: os homens portugueses tratam os carros como se fossem mausoléus ou mesas de operações.
O ritual faz-me espécie por duas razões. Em primeiro lugar, não compreendo o fetichismo do automóvel. Eu só limpo o meu carro quando ele parece uma prisão turca; até esse momento, vou adiando a ida à limpeza. É só um carro, isto é, um electrodoméstico grande. É preciso limpar a torradeira todos as semanas? Em segundo lugar, é trágico verificar um pormenor: os homens que perdem horas e euros na limpeza do carro são os mesmíssimos homens que não fazem nada em casa. Tal como revelou o último estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, os homens portugueses estão no topo da preguiça doméstica. As tarefas domésticas, começando na cozinha e acabando na limpeza da casa e da roupa, estão sempre a cargo delas. Ele nunca pode: ou tem de ir jogar futsal com os amigos, ou tem de ir ver o Benfica no café, no estádio ou no sofá, ou tem de passar pelo café antes de vir para casa, ou tem uma reunião ou uma viagem, ou não sabe lavar loiça, não foi educado para isso, etc., etc. Tenho sempre a impressão de que o homem português nunca chega a crescer, permanecendo numa perpétua puberdade. É como se o homem português passasse da condição de filho da mamã para a condição de filho da mulher. É sempre um dependente. Não admira, portanto, que entre em queda livre perante a ideia de separação.
Isto não é um pormenor. Os constantes assassinatos de mulheres em Portugal são o resultado final desta cultura que esmaga a mulher; uma cultura que diz ao homem que passar a ferro é coisa de banana e que lavar o carro é que é um ritual másculo, uma cultura que não vê um problema nos apalpões na adolescência ou nas perseguições na vida adulta, uma cultura que destratou como "galdéria" a mulher que apresentou um caso fortíssimo contra Cristiano Ronaldo. A violência doméstica começa na violência que é a mulher chegar do trabalho para depois tratar sozinha do jantar, dos miúdos, da roupa, da limpeza enquanto ele está agarrado à Benfica TV, à Sport Tv, à Playstation, à cera que vai aplicar no capô do carro.