15 nov, 2019
Na autobiografia de Patti Smith, há uma grande mas discreta passagem: ela engravida muito jovem; sendo cristã, recusa o aborto mas também recusa a ideia de ser mãe solteira, não está preparada. A solução é muito discreta: ela dá logo o bebé para adopção assim que ele nasce, sem burocracias, sem questionários, sem comentários. Ela, a mãe, não é humilhada por uma sistema inquiridor. Em consequência, o mais importante é alcançado: a salvaguarda da vida do bebé, que não é abortado, que não é deixado num descampado.
Há dias, já no contexto do caso do bebé abandonado no lixo, a “Visão” publicou uma peça da jornalista Patrícia Fonseca que nos mostra como esta discrição é impossível em Portugal. Se quisesse entregar o bebé para adopção aqui em Lisboa, aquela mulher sem-abrigo teria de passar por um lento e humilhante processo de inquirição. Não podia ficar incógnita, tinha de ser identificada e interrogada. Este é um sistema de uma sociedade moralista e não moral, até porque depois exige a comparência perante um juiz. Gostava que imaginassem o cenário: uma rapariga sai da maternidade sem o filho que deu para adopção; como se isto não fosse suficiente, ela tem de comparecer 15 dias depois junto de um juiz. Para quê esta humilhação extra que funciona como foco dissuasor da intenção original (ter a criança, não abortar)?
Se uma rapariga engravida e não está preparada para ser mãe por esta ou aquela razão (cabe a Deus julgar as razões), então o melhor cenário é fazer tudo para evitarmos a tentação do aborto e do infanticídio. Qual é a causa da esmagadora maioria dos abortos? A vergonha, a pressão social, os rótulos que se colam, “mulher fácil”, “quenga”, “sem vergonha”, “imoral”, “não tem responsabilidade”, etc., etc., etc. Em Portugal, a impossibilidade do anonimato e a comparência perante um juiz reforça essa humilhação. Noutros países europeus, as mães podem decidir dar o bebé para adoção ainda durante a gravidez (o processo fica fechado na gestação) e não têm de ser identificadas. Em países como Alemanha, Inglaterra, Suíça, Itália e Polónia, até já saltámos para o futuro através do passado. Explico-me: a roda dos expostos, prática medieval ilegalizada no século XIX, está de regresso a estes países. Chamam-lhe agora "caixa segura” e funciona como uma moderníssima roda dos expostos: na parede da maternidade ou hospital, há uma janela, que, uma vez aberta, dá para um berço aquecido e com uma luz ténue, ou seja, o berço é um cofre onde se vai depositar o bebé; a mãe pode deixar ali o bebé sem que ninguém a veja, sem que ninguém a questione; assim que ela fecha a janela com o bebé lá dentro, o cofre-berço só poderá ser aberto por dentro pelas enfermeiras; a mãe pode deixar a sua identificação (que só poderá ser revelada quando a criança atingir os 16 anos) e lembranças, bonecos, peluches, cartas, bilhetes onde podemos ler coisas como "Chamo-me João".
Nas fotografias que acompanham a peça da “Visão”, podemos ler a seguinte legenda na foto de uma “caixa segura” polaca: “na Polónia, apesar do conservadorismo cristão, a Cáritas multiplica as caixas seguras para bebés”. Apesar do conservadorismo cristão? Lamento, mas esse "apesar de" não faz sentido. Esta prática é católica, a roda dos expostos estava montada nos conventos. Esta prática é uma consequência e não a negação da visão moral do catolicismo. Escrevi "moral" e não "moralista", porque no final do dia só há uma pergunta: queremos punir as mães solteiras abandonadas pelos namorados (que nunca são responsabilizados) ou queremos salvar as vidas dos bebés, evitando abortos e infanticídios? Se queremos a vida e não a punição, o regresso da roda dos expostos, a tal "caixa segura", é uma solução.