13 dez, 2019
Tens razão: nós, pais e mães, estamos esgotados. A nossa geração sente-se esmagada pela paternidade/maternidade. Muitos dir-nos-ão que foi sempre difícil, que somos uns meninos, que não temos estofo, que não somos homens e mulheres a sério. Perante este discurso, muito habitual nos avós, eu respondo: foi sempre difícil, claro, mas nunca foi tão complicado. Nunca foi tão pesado, porque o caderno de encargos que nos esmaga não esmagava os pais de outrora. E repara que não estou a falar das viscondessas ou plebeias do século XIX, estou a falar dos nossos pais há poucas décadas.
Nos anos 70 e 80, os adultos não tinham nem metade do peso que nós temos. Por exemplo, nós não estávamos sempre doentes porque não frequentávamos creches. Compara o teu cadastro médico com o cadastro médico dos teus filhos: eles, aqui e agora, ficam doentes muito mais vezes do que tu com a mesma idade. Não tem comparação. Eles têm de ficar em creches e não com avós ou tias, e talvez isso lhes faça bem pedagogicamente, mas esse crescimento intelectual pré-escolar tem um preço: as doenças constantes que nos provocam um cansaço terrível, noites sem dormir, dias sem trabalhar que têm de ser compensados, projectos que ficam por cumprir, frustrações acumuladas.
Depois temos as exigências em casa e na escola. Os nossos pais não nos entretinham, porque nós tínhamos espaços físicos (a rua) para brincarmos sem adultos por perto e porque tínhamos imensos irmãos, primos, vizinhos com quem brincar. Agora os nossos filhos não têm rua e não têm irmãos ou primos ou vizinhos. Somos nós, os pais, que temos de brincar com eles quando já não temos energia. Em cima desta questão lúdica, há a questão pedagógica: a pressão das notas desde tenra idade. Caramba! Até aos vinte anos, eu andei à nora, não sabia o que queria ser na vida. Se me tivessem dito aos 15 anos que eu ia ser cronista do Expresso, a minha resposta não teria sido "estás a gozar, isso é impossível", teria sido "o que é o Expresso?". Sim, podes rir à vontade, porque esse riso é o reflexo certo: nós éramos mais relaxados, havia menos pressão e mais liberdade. Eu estudava aquilo que me interessava, chumbei de ano uma vez. E depois? Os nossos filhos vivem numa atmosfera diferente. Logo aos sete anos são carregados com uma pressão que só faz sentido na faculdade ou a partir do décimo ano. Queres continuar a empilhar problemas que não existiam no passado, minha querida? Ao lado da escola, há a metralhadora das actividades que não passava pela cabeça dos nossos pais, pelo menos nesta escala: inglês, natação, karaté, ginástica, pintura, explicações, dança, o futebol que não se joga na rua mas em academias, etc., etc. Já nem o sábado de manhã tens para ler os jornais.
Para terminar esta pilha que nos sufoca, quero mencionar algo intrinsecamente positivo: a evolução da medicina e do conhecimento do neuro-desenvolvimento da criança. No passado, uma criança com dislexia, por exemplo, era "uma criança que não dava para a escola”, os pais resignavam-se e ela também. Crescia frustrada porque não encontrava forma de verter a sua inteligência para a realidade. Hoje, há um conhecimento médico do problema e um trabalho a fazer para o vencer; trabalho da criança, claro, mas também dos pais. A dislexia é só um exemplo de uma variedade de problemas e das respectivas terapias. Dão trabalho mas são necessárias.
Esta questão do neurodesenvolvimento e da ideia da diversidade de cérebros humanos é, se me permites, a melhor porta de entrada para aquela que me parece ser a grande causa do nosso cansaço: a criança já não é unidimensional. Até à nossa infância, as crianças eram tratadas todos por igual, só havia um padrão de comportamento e de educação. Isso mudou. Mesmo quando lidamos com crianças neuro-típicas, há um ponto novo e revolucionário: a individualidade da criança é respeitada. Os nossos avós e pais não ouviam o ponto de vista da criança, a criançada era o “outro” distante. Nós andávamos atrás dos adultos e ninguém nos perguntava se aquele almoço fastidioso na casa dos sócios do pai estava a ser "fixe". Não, não estava, mesmo com a piscina! E, quando a criança não cumpria, entrava-se na violência. As coisas resolviam-se à pancada, como bem sabes. Apanhar de forma sistemática era a norma, não a excepção. Porque é que apanhávamos? Porque isso facilitava a vida dos pais. Se tu distribuísses palmadas e chapadas todos os dias aos teus filhos, garanto-te que andarias fresquinha e sensual como uma modelo de Instagram. Não, não estou a falar de uma ou outra palmada que às vezes sai no desespero e que nos queima com a culpa durante meses. Estou a falar do uso sistemático da violência e da humilhação física, que era o padrão. Ainda sou do tempo da régua na escola. Ainda sou do tempo em que os canhotos eram forçados a escrever com a direita. Parece coisa do século XIX, não é? Não, está logo ali nos anos 80.
Nós fazemos parte da primeira geração de pais que tem pela frente um projecto quase utópico: educar uma criança sem violência. É uma odisseia. A energia mental e física necessária para educar um ser humano sem o recurso sistemática ao estalo e à palmada é quase sobrehumano. A utopia do fim da palmada tem este reverso da medalha pouco falado: o brutal cansaço dos pais, que têm de educar a teimosa natureza humana sem o punho de ferro. Mas eu celebro esse cansaço. Se não andássemos cansados, estaríamos a fazer as coisas mal: ou seríamos pais ausentes ou seríamos pais violentos.
Já que estamos a falar de crianças, deixa-me acabar com "Harry Potter". No final do quinto volume, Dumbledore diz o seguinte ao Harry: "vamos ter de escolher entre o que é fácil e o que está certo". Minha querida, escolhamos o que está certo, mesmo que isso nos deixe neste estado de exaustão. Escolhamos o que está certo, até porque estamos a criar modelos para o futuro. Até aos nossos pais, a educação das crianças foi basicamente a mesma ao longo dos séculos. Nós estamos a educar os nossos filhos sem modelos, estamos a pensar e a fazer as coisas ao mesmo tempo, somos a trincheira entre dois tempos diferentes. Eles, os nossos filhos, quando tiverem os seus filhos, os nossos netos, já terão modelos adequados: nós.