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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Carta a um velho

30 abr, 2020 • Opinião de Henrique Raposo


Eu sei que não posso ser filho e sobrinho, não posso ver os meus pais e tios. As minhas filhas não podem ser netas, não podem ver os avós, mas porque é que não podem ser alunas e porque é que os pais deste país não podem voltar ao trabalho para salvar literalmente as suas vidas da destruição económica e mental?

Meu caro,

gostava de partilhar consigo os meus dilemas perante este vírus que nos trata de maneira diferente: tal como a esmagadora maioria da população, eu estou fora do grupo de risco; o meu caro amigo, ao invés, tem um alvo nas costas. Perante outros vírus mais mortíferos, nós seríamos iguais, eu poderia morrer tal e qual como o meu amigo. Só que este vírus, sendo menos mortífero, espalha-se mais e consegue chegar a mais corpos frágeis como o seu. É esta duplicidade etária que tem dificultado o enfoque moral da sociedade perante a pandemia.

Eu, por exemplo, já fui criticado por ter cão e por não ter cão. Quando Ramalho Eanes, afirmou que um velho deve dar o seu ventilador a um homem mais novo, eu reagi de imediato: esse acto, por muito bravo que possa parecer, tem fraca validade moral. Uma vida é uma vida. Um velho de 80 anos tem uma vida tão digna como um homem de 40 ou 20. O critério ético não pode ser a idade, tem de ser a condição médica. Vamos imaginar um cenário em que eu tenho várias doenças graves; neste cenário, os meus 41 anos altamente debilitados poderiam levar os médicos a dar o meu ventilador aos seus 70 anos altamente saudáveis, porque o meu caro amigo teria mais probabilidades de sobreviver. Quando escrevi isto, fui criticado por pessoas que acham que uma vida aos 18 anos deve ter prioridade sobre uma vida aos 80.

Mas, do outro lado, já fui criticado por me limitar a salientar a natureza específica deste vírus: mata sobretudo idosos em idade avançada e já dentro da esperança média de vida. Repare: a média de óbitos por covid-19 em Portugal é 81 anos; a esperança média de vida em Portugal é de 81 anos. Ou seja, este vírus vem acelerar uma morte natural que iria suceder em breve por esta ou aquela razão. Eu não estou, como já lhe disse, a desvalorizar a vida dos velhos. Estou é a aceitar a inevitabilidade da morte natural. Bem sei, bem sei: esta sociedade, como já escrevi aqui dezenas de vezes, não sabe lidar com a morte natural que escapa ao poder humano.

Seja como for, é preciso ter noção das diferenças: uma coisa é um vírus que mata crianças, jovens, adultos e velhos independentemente da condição médica; um vírus que cria a morte do nada até em corpos saudáveis e jovens. Isto, sim, seria o fim do mundo. Outra coisa é este vírus “relativamente bonzinho” que vem acelerar a morte natural de pessoas com 80 e 90 anos e já muito debilitadas, deixando de lado crianças, jovens e adultos. Médica, política e moralmente, há aqui uma enorme diferença. E o #ficaremcasa nasce de um pânico que só seria aceitável perante um vírus que matasse toda a gente a eito. Não é o caso.

Isto serve para quê? Para calibrarmos a resposta. Eu sei que não posso ser filho e sobrinho, não posso ver os meus pais e tios. As minhas filhas não podem ser netas, não podem ver os avós, mas porque é que não podem ser alunas e porque é que os pais deste país não podem voltar ao trabalho para salvar literalmente as suas vidas da destruição económica e mental?

O primeiro-ministro diz que não quer fomentar o “estigma” contra os velhos e que, por isso, recusa colocar apenas os mais velhos na exigência do confinamento. Isto é um absurdo. Isto não é gerir a pandemia, é gerir sensibilidades. Mas qual “estigma”, meu caro? Estamos a falar de uma realidade objectiva e não de um preconceito subjectivo. Este vírus mata sobretudo pessoas com 70, 80 e 90 anos, ponto final. São essas as pessoas que devem ficar em quarentena. Repare que isto não quer dizer que aceito o confinamento coercivo dos velhos. Acho que os idosos devem ser tratados como adultos. Conhecem os riscos e devem ter a liberdade para enfrentar o risco, até porque o isolamento pode ser muito pior do que o vírus. Muito pior. Mas o respeito pela sua liberdade individual, meu caro, não deve travar um discurso político que isole com clareza a situação: estamos a viver uma situação delicada porque o vírus é complicado para pessoas idosas e doentes.

Quando digo que as escolas e empresas até 50 pessoas deviam ter ficado abertas, quando digo que o problema são os lares de idosos e não as escolas, quando digo que a quarentena deve ser só para os idosos, eu não estou a estigmatizá-lo, estou a protegê-lo do vírus, de um lado, e da crise económica, do outro lado. Se a quarentena fosse apenas para os mais velhos, nós conseguíamos proteger os mais frágeis, não atiraríamos milhares ou milhões para o desemprego e criaríamos mais rapidamente a imunidade de grupo, a necessária meta, porque a utopia da “vacina para breve” é isso mesmo, uma utopia, uma falsa esperança.

Não lhe roubo mais tempo. Termino só com isto: não se trata de estigma, meu caro, mas sim de ciência e de amor.

Um abraço,

Henrique Raposo

Comentários
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  • Fátima Vaz
    01 mai, 2020 Maia 20:58
    Quando vi o seu nome, pensei imediatamente que deveria ser um artigo lindo sensível genial. Ao invés, fiquei dececionada. A puxar ao sensível, mas com um toque de treinador de bancada. Facílimo. Resolvia tudo de uma penada só. E fantástico os professores, sempre os mesmos malandros iam para a linha da frente. Quanto a mim, que sou professora e tenho 55 anos, dir--lhe-ei, rotundamente, : Vá, Vossa Excelência! E quanto à minha mãe com 86 anos, que Deus permita que chegue a conhecer os bisnetos. Sem abraços e muita saudinha.
  • César Saraiva
    01 mai, 2020 Maia 18:43
    Também eu lhe mando um abraço de gratidão pela lucidez da sua excelente opinião, com que concordo.
  • Luso
    01 mai, 2020 Lisboa 12:15
    Quando h´uma doença tratam-se com medidas de contençao,suporte e intervençao especifica de acordo com doença e idade.Pouco se sabe deste virus chinês pegajoso mas para leigos basta comparar com pandemia 1917 na china e 2018-2019 no Ocidente medidas tomadas e as Três ou quatr ondas devastadoras com um numero de infetados e mortos que ultrapassaram os morridos durante as guerras recentes,civi espanhola,1 e 2 grandes guerras.A proteçao e tratamento tem mesmo de ser de acordo com idade,sexo e raça.A grande hipocrisia da telenovela das mascaras é um bom exemplo ainda nao terminado.Mascaras em geral N99 ou P3 com viseira para todos,desinfeçao aturada de espaços etc .e teriamos uma vida práticamente normal.As estruturas mais fragilizadas tem que ser reforçadas como na construçao civil.Com esta proteçao as mortes seriam diferentes.Mas nâo primeiro nega-se a inutilidade de uso de mascaras e limpeza,desinfeçaode ruas e recintos.depois lança-se uma grande confusao na utilidade das mascaras cirurgicas e outras.Dissecando ,as mascaras serão só uteis segundo ELES quando todos usam.Qual o poder de filtragem de particulas tem a mascara comunitária ou cirurgica quando o portador espirra e quando recebe o espirro de outro doente isto é qual a eficacia quando o virus choca com a mascara e quando o utilizador espira para a sua propia mascara-aspecto que nao vi esclarecido .Ónde se guarda a mascára?após utilizaçao parcial.?Se tomadas as medidas protetoras ad inicio as mortes teriam outro desfecho