17 jul, 2020
Como é que vos posso dizer isto? Então a ver aquele sobressalto que sentiram aquando da morte de David Bowie ou Leonard Cohen? Registem por favor esse sentimento amargo, porque é essa a sensação de perda que eu senti quando morreu há dias o Ennio Morricone, um dos grandes heróis cá de casa. É uma sensação parecida àquela que senti aquando da morte do nosso Bernardo Sassetti ou do islandês Jóhann Jóhannsson. São heróis. São amigos que passam comigo horas. A par obviamente da música clássica, este é o meu género de música: neoclássica, atmosférica, bandas sonoras; não sei, chamem-lhe o que quiserem. As minhas filhas chamam-lhe a “música assustadora do pai”. É a música que oiço ao longo do dia no escritório: Morricone, Sassetti, Jóhannsson, Rodrigo Leão, Max Richter, Olafur Arnalds, Preisner, Zimmer (que se aburguesou um pouco, é verdade), Cassidy, Hildur Gudnadottir, Umebayashi, Desplat, Korzeniowski e tantos outros. E claro que é natural o salto destes compositores para o pós-rock dos Dead Can Dance, Sigur Rós ou Mono. São estes os autores que mais invejo: conseguem transmitir emoções e pensamentos através de algo impalpável e invisível, a música, talvez o ábaco mais utilizado por Deus na ordenação matemática do mundo.
A base desta melomania é Ennio Morricone. Sem ele, os outros não existiriam na minha frequência sonora. Fui construindo ao longo da vida adulta este gosto musical, porque passei a infância a ouvir a música de Morricone através dos filmes que o meu pai via. Ele, sentado no sofá, via os filmes; eu, no chão, fazia legos e ouvia as trilhas do Morricone. E, camada após camada, a beleza foi acamando. É bom perceber que estes filmes e estas bandas sonoras, vistos e ouvidos na mais absoluta inocência e ignorância, resistem ao olhar adulto. Fascinavam-me aos 8 anos. Fascinam-me aos 41.
A música de Morricone transmite uma emoção em estado puro. A música central do “Bom, Mau e Vilão”, por exemplo, é puro divertimento; é uma música que nos está a dizer, Vamos rir, vamos parodiar isto tudo! No final deste filme, a famosa “Ecstasy of Gold” é a sonorização do júbilo; é uma injecção de gáudio e triunfo sem espinhas. Já a música do “Era uma Vez no Oeste” mantém esse júbilo, mas corta-o com uma assombração; há ali um duelo entre uma alegria enorme e uma sombra; a alegria vence após duelo. É por isso mais complexa do que a marcha de “Os Intocáveis”, um triunfo do bem sem espinhas, sem zonas negras. O filme de Brian de Palma é para a adolescência, o de Leone para a vida adulta. Se “Era uma Vez no Oeste” mostra um choque entre a luz e a sombra com a vitória da primeira, a banda sonora de “A Missão” inverte os pólos: há um duelo entre a esperança e o mal, mas desta vez o mal acaba por esmagar a luz. Há mais, muito mais, desde as bandas sonoras dos filmes do Pasolini até à banda sonora do segundo filme de Terrence Malick, “Dias do Paraíso”. Malick, de resto, é o grande repositório cinematográfico deste estilo de música que tem em Morricone a raiz inamovível.
Desde a minha infância até ao presente, desde a altura em que os westerns do meu pai eram o pináculo da minha cultura até aos dias de hoje, que são passados ao som das cantatas celestes de Bach ou das cavalgadas demoníacas de Gudnadottir, desde 1985 até 2020 não haverá maior elo de ligação artístico na minha vida do que a música de Morricone. É uma permanência que me comove.