23 out, 2020
O sexo é a maior prisão dos católicos. Aliás, muitas vezes o catolicismo assemelha-se a uma obsessão com a cama dos outros – um facto indesmentível que afasta milhões da Igreja.
Na questão da homossexualidade, até percebo a recusa do casamento religioso, mas não percebo a diabolização do gay/lésbica enquanto pessoa. O gay pode e deve fazer parte da família cristã como qualquer outro filho de Deus, até porque a nossa identidade sexual não é assim tão importante. O problema dos castos, aliás, é este: transformam paradoxalmente a sexualidade no centro de tudo.
Em paralelo, não compreendo a recusa da união civil de gays e lésbicas. Uma família é uma família, seja qual for a sua orientação sexual. Entre homossexuais casados e comprometidos com o sacrifício inerente à criação de uma família e heterossexuais presos à cultura do individualismo hedonista que despreza a família e o casamento, estou com os primeiros.
Quando se fala na alegada condenação da homossexualidade, é certo e sabido que surge a invocação apressada do episódio de Lot em Sodoma (Gn 19). Dois mensageiros da Palavra entram em Sodoma; na obediência ao dever da hospitalidade, Lot acolhe-os em sua casa. Uma multidão de homens aparece para violar os visitantes. Lot não o permite.
Ora, o episódio não é uma condenação da homossexualidade, é uma condenação da violência sexual, seja ela qual for. É uma condenação da violação e não da orientação sexual dessa violação.
A seguir, Lot sai de Sodoma, passa por Soar e acaba nuns montes perdidos. As suas duas filhas concebem filhos do próprio pai. A mais nova tem Ben-Ami, fundador dos amonitas. A mais velha tem Moab, fundador dos moabitas. Tribo impura? Pensem de novo: Rute, uma moabita, é a personagem de um dos livros fundamentais do Antigo Testamento sobre o perdão (Livro de Rute) e o próprio Jesus Cristo tem sangue moabita. Rute está na linhagem de sangue de Jesus. Lamento, mas não há pureza sexual que sobreviva à Bíblia. Já agora, Abraão e Sara praticaram incesto.
Claro que os obcecados com o alegado pecado da homossexualidade podem depois invocar os códigos legais do Levítico e do Deuteronómio. Mas nós, como católicos, seguimos o Evangelho de Jesus Cristo ou seguimos códigos legais de uma tribo em guerra pela sobrevivência há três mil anos? Jesus passou a vida a retirar importância a grande parte das regras exteriores do Levítico e Deuteronímio. Não podemos comer frutos do mar? Devemos apedrejar mulheres e filhos?
A nossa chave é o Evangelho. Não é Filipe forçado a batizar o eunuco etíope (Act 8)? Tal como Jonas é enviado a Nínive, Filipe é enviado ao eunuco, que já não pode ser visto aos olhos de Levítico. E repare-se que “eunuco” não tem aqui uma leitura meramente técnica, não é só o castrado; “eunuco” pode ser visto como sinónimo de “homossexual”.
Aliás, através da palavra “eunuco”, Jesus Cristo (o próprio) constata com toda a naturalidade a presença da homossexualidade: “Há eunucos que nascem assim no seio materno, há os que se tornaram eunucos pela interferência dos homens e há os que se fizeram eunucos a si mesmos por amor ao Reino de Deus. Quem puder compreender, compreenda” (Mt 19, 12). “Há eunucos que nascem assim no seio materno” e “há os que se fizeram eunucos a si mesmos por amor ao Reino de Deus”.
Trata-se de uma constatação sem qualquer carga pejorativa da presença da homossexualidade na Criação. A par desta passagem, temos ainda que destacar o absoluto silêncio de Jesus sobre orientação sexual ou sexo entre pessoas do mesmo sexo. Não há nada. Zero. O Papa Francisco teve a coragem de olhar a sério para Mt 19, 12. Só isso. “Só”.