06 nov, 2020
No contexto cultural dos EUA, o catolicismo foi sempre apresentado como sinónimo de atraso ou de radicalismo. É uma teoria wasp que deu e dá jeito às esquerdas anti-religiosas dos próprios países católicos. Por exemplo, a nossa Geração de 70, através de Antero, patrocinou a ideia de que o protestantismo era o cristianismo bom e conciliado com a modernidade e que o catolicismo era o cristianismo mau e não conciliado com a modernidade e a liberdade. Portanto, a propaganda de Milton (“Areopagítica”) tornou-se assim num lugar-comum incontestado e partilhado por protestantes anglo-saxónicos e por laicos francófonos: o catolicismo é atrasado e fanático, o protestantismo é moderno e não radical.
Mas será mesmo assim? Não é a Baviera, a zona mais rica da Europa, uma província altamente católica?
Um amigo católico e portuense que viveu na área de São Francisco e que conhece a América profunda costuma partilhar esta perplexidade. Como sou católico, diz ele, sou colocado muitas vezes num campo de alegada radicalidade pelos americanos laicos e religiosos, mas, na verdade, eu vejo essa radicalidade ‘single issue’ nos protestantes e não nos católicos! Julgo que o meu amigo tem razão. Olhe-se para este exemplo: católicos e protestantes unem-se na defesa da vida e na consequente crítica ao aborto, mas, a jusante, muitos protestantes desviam-se da vida, pois defendem a pena de morte e o acesso às armas. Como é que partidários da vida podem defender a injecção letal como processo legal e o acesso a metralhadoras como direito adquirido, sobretudo num contexto marcado por tantos massacres possibilitados por esse acesso fácil às armas? Há aqui uma brutal incoerência na chamada Bible Belt protestante, a mesma Bible Belt que defendeu a segregação e a escravatura. Ao invés, quando olhamos para o mapa, as zonas de maior influência católica determinam uma diminuição da adesão às armas e à pena de morte.
Então, quem é afinal o radical?
Tenho para mim que o século XXI americano será católico ou será caótico. E, se for católico, a fonte do catolicismo não será apenas a migração hispânica. Há políticos branquíssimos, democratas e republicanos, que estão a usar o catolicismo como ponto de encontro entre as duas Américas. O espírito de conciliação de Biden é um bom exemplo. Biden é o segundo presidente católico dos EUA depois de Kennedy. E agora espera-se que a moderação católica de Biden seja um exemplo para os mais novos. Um político democrata e católico pode ser um ponto de equilíbrio de uma esquerda demasiado ateia e libertária e, por isso, distante dos valores da família e da comunidade. No mesmo sentido, um republicano católico e afastado do radicalismo protestante pode ser um ponto de equilíbrio à direita, pois é capaz de repensar a questão das armas, da pena de morte e do acesso à saúde, três tabus junto do mainstream wasp.
É um salto de fé? Sim, mas é fé, não é pensamento mágico: o catolicismo pode ser o chão comum da América do século XXI. O católico Biden é só o primeiro passo.