02 jul, 2021
O tal relatório Matic tem duas faces, duas intolerâncias em jogo, mas, como sempre, só se fala de uma. Só se fala da intolerância que ataca o relatório; não se fala da intolerância do próprio relatório. Esta intolerância permanece escondida, pois até é vista como uma defesa da liberdade e da modernidade. Fala-se muito, e bem, da Hungria e do desrespeito pelos homossexuais e do choque entre essa ideologia homofóbica e os valores europeus. Acho bem. Mas não podemos esquecer que as ameaças à dignidade e à liberdade do ser humano não vem apenas do nacionalismo reacionário ou populista, chamem-lhe o que quiserem. O outro lado, o lado alegadamente progressista, também tem o seu lado lunar.
Não vou discutir de novo a questão do aborto. Vou apenas salientar o que está em jogo: com este relatório Matic, que poderá ser lei em breve, os defensores do "sim" mostram que já não ficam satisfeitos com a transformação do aborto numa espécie de direito; já não ficam satisfeitos com a normalização da prática. Agora também querem destruir a liberdade dos médicos objectores de consciência.
Ou seja, mesmo que permita o aborto, a lei de um país não pode proibir a objecção de consciência dos médicos. Há médicos que recusam fazer abortos, porque consideram essa prática imprópria. Têm esse direito. A lei não pode ser autoritária e extinguir a moral íntima de cada um. Há diferentes percepções sobre a questão e o lado vencedor, o "sim", não pode impor de forma autoritária a sua visão aos médicos que estão do lado do "não". Forçar um médico católico a fazer um aborto é como forçar um homossexual a ficar para sempre no armário da vergonha, é desumano, é intolerante. E o tal relatório Matic é assim: é intolerante, só vê um lado e considera que a liberdade de consciência de médicos e hospitais que recusam fazer abortos não passa de uma "clausura" que tem de ser destruída. Estes médicos, diz o relatório, devem obediência à lei e ao estado. Os deputados europeus repararam na enormidade que aceitaram como ponto de partida?
O alegado direito ao aborto não pode ser superior à liberdade de consciência de cada um, a começar na consciência dos médicos. O relatório que protege a liberdade dos homossexuais não pode ser o relatório que extermina a liberdade e a objecção de consciência dos médicos no aborto. A ideia de que um indivíduo não tem liberdade e objecção de consciência perante uma lei do estado é - em si mesmo - a base do pensamento ditatorial. É a ideia mais perigosa de todas: o indivíduo não tem direito a um espaço de divergência íntima em relação ao poder; temos de nos calar perante a lei do leviatã controlado por uma facção ideológica. Falta o quê depois disto? O fim do habeas corpus?