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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

O calvário dos abusos

24 jun, 2022 • Opinião de Henrique Raposo


Fazes o quê quando tudo à tua volta, a começar na tua própria igreja, parece marcado pelo pecado e pelo cinismo? Resistes mesmo sabendo de antemão que podes pagar um preço. Resistes porque sabes que Ele existe e que a bondade existe, mesmo que seja quase impossível vê-la aqui deste lado da Criação.

Comecei por ouvir “Calvary”. Só vi o filme na semana passada (no Disney +), mas já oiço a banda sonora muito irlandesa há vários anos. E a minha questão inicial era a seguinte: será que o filme de John Michael McDonath atinge a qualidade da música do Patrick Cassidy? Atinge. “Calvary” (2014) é uma grande comédia negra sobre a fé e sobre o clero no contexto dos abusos. É uma parábola teológica, uma reflexão moral num tempo cínico e amoral.

James (Brendan Gleeson) é um padre de uma pequena vila costeira na Irlanda. É ameaçado de morte logo na abertura. No confessionário, alguém lhe diz que só tem uma semana de vida, pois ele vai pagar pelos pecados sexuais da igreja; o agressor misterioso foi vítima de abusos e agora vem apresentar a conta na forma de uma bala; o agressor sabe que James é um bom padre, mas também diz que só vale a pena matar um bom padre enquanto sinal ou aviso ou vingança. Ele, James, não foge, fica e tenta salvar quem o ameaçou.

No fundo, através deste padre irlandês, revemos a Paixão: Jesus sabe que vai morrer daquela forma, mas nunca recua, nunca abandona o seu rebanho e, acima de tudo, sabe que deve morrer para limpar os pecados da humanidade. Neste caso, James dá o corpo e a vida pelos pecados da igreja e pelos seus próprios pecados. O assassino sabe que ele é um bom padre, mas, na conversa derradeira, o próprio James assume que não se revoltou o suficiente em relação aos seus colegas abusadores, assume que chorou quando lhe mataram o cão mas que nunca chorou por causa dos abusos.

Ninguém está a salvo neste filme.

A premissa do filme é inverosímil, tal como as personagens em redor de James. Numa pequena vila costeira é impossível termos tantas personagens-tipo, a Irlanda moderna inteira: o banqueiro corrupto da crise de 2008, o médico cínico e ateu, o padre (colega de James) sem vocação, o emigrante negro, a mulher que sofre violência doméstica, o dono do bar que é anticlerical, e até um assassino em série. Há ainda a própria filha de James, que só entrou no clero após a morte da mulher. E esta mulher, Fiona, não é só a filha do padre, também representa aqui o suicídio. Portanto, há demasiado carga para uma só pessoa, uma só vila. Mas convém perceber que este não é um filme lançado em premissas realistas; é uma parábola cujas peças tão díspares são agarradas pela presença magnética de Brendan Gleeson.

Entre este início heterodoxo e o fim anunciado, a tensão do filme gira em torno de um pormenor: James sabe quem é a pessoa que o ameaçou, mas nós não. Ao longo de duas horas, esta estranha, negra e, sim, cómica parábola apresenta-nos o tal elenco de personagens trágicas e caídas. Estamos sempre a pensar: quem é o assassino? O médico ateu que gosta de tentar provar que não há Deus devido ao sofrimento médico que vê todos os dias? A mulher que é agredida e que perdeu a fé no amor? Será que é o mecânico que bate em mulheres sem qualquer sentido de culpa? Será o banqueiro corrupto e marcado pela culpa? Será o homem traído? Será o velho à beira da morte e do desejo de suicídio? Será o dono do pub abertamente anti-clerical? Todas as personagens são marcadas pelo pecado e pela queda e todas mantêm diálogos de alto nível teológico com James sobretudo sobre o cinismo. Há qualquer coisa de “Divina Comédia” neste filme, quer na dimensão de parábola, quer na qualidade teológica dos diálogos, quer no sentido de espaço notável das cenas, sobretudo aquelas que se passam junto à bravia costa irlandesa.

"Calvary", no final, é então sobre o quê? Talvez seja sobre a resistência da bondade no meio do caos e do cinismo. Fazes o quê quando tudo à tua volta, a começar na tua própria igreja, parece marcado pelo pecado e pelo cinismo? Resistes mesmo sabendo de antemão que podes pagar um preço. Resistes porque sabes que Ele existe e que a bondade existe, mesmo que seja quase impossível vê-la aqui deste lado da Criação.

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