22 abr, 2021 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Ana Sá Lopes (Público)
Ferro Rodrigues alinha com a posição do Presidente da República na urgência de legislar sobre enriquecimento ilícito ou injustificado e admite que a actual lei sobre as declarações de património e rendimento para altos cargos públicos e políticos pode ser "melhorada".
Na entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal 'Público', o Presidente da Assembleia da República entende que a recente proposta da Associação Sindical de Juízes "é um bom contributo", abrindo assim a porta a uma solução "desde que não ponha em causa a presunção de inocência e a inversão do ónus da prova".
"Há condições para melhorar e fazer leis mais activas e mais capazes de acabar com todas as vigarices em todos os planos da vida pública portuguesa", afirma.
Já foi secretário-geral do PS. Também acha, como Fernando Medina, que o comportamento de José Sócrates como primeiro-ministro corrói o funcionamento da vida democrática?
O dr. Fernando Medina é um comentador político. Eu não sou comentador e sou Presidente da Assembleia da República. Considero que seria impróprio e seria mesmo censurável que o Presidente da Assembleia da República se manifestasse, seja a que nível for, sobre um processo que está a decorrer, teve uma decisão que vai ser contraditada por vários recursos. Não me vou pronunciar sobre tal. Mesmo em termos políticos ou morais só me pronunciarei quando ele estiver transitado em julgado.
Subscreve o que diz o primeiro-ministro "à política o que é da política à justiça o que é da justiça". Há duas linhas no PS. Há esta e outra que pede uma autocrítica.
O primeiro-ministro teve uma atitude de defesa do Partido Socialista como lhe competia. Foi o que fez há muitos anos e reiterou agora.
Este é um tema que pesa ao PS, mas também a todo o sistema político e à democracia...
Vamos ver como vai acabar. Depois de acabar, cá estaremos todos para ver quais foram os estragos e as consequências para todo o sistema político e para o sistema judicial.
O Presidente da República disse que era a altura de se avançar com legislação sobre enriquecimento ilícito. Usou mesmo a expressão "é desta" e "todos querem".
A situação quanto a essa matéria mudou muito. Não apenas pelo que disse o Presidente, mas muito antes quando foi aprovada aqui na Assembleia da República por influência fundamental do Partido Socialista novas regras para as declarações de património e rendimento para cargos políticos. Estamos a falar não apenas de deputados e membros do Governo, mas estamos também a falar de autarcas, de juízes, de procuradores. É um crime já previsto que haja falsas declarações ou que haja omissão de declarações sobre aumentos de património. Há todas as condições para o que tiver que ser melhorado nesse quadro, desde que não ponha em causa a presunção de inocência e a inversão do ónus da prova. Há muitas maneiras de, com base nessas declarações, fazer exigências para que os aumentos de património ou rendimento tenham que ser explicados. E no caso de haver dúvidas, existirão acções judiciais contra este ou aquele titular de cargo.
Mas acha que a lei que existe chega?
Acho que a lei pode ser melhorada. Foi um grande salto que foi dado. E aqui homenageio o deputado Jorge Lacão que teve um papel muito importante. E vi com muito interesse um artigo que ele escreveu no 'Público' em que diz que a proposta da Associação Sindical de Juízes é uma proposta perfeitamente complementar e que se encaixa nesta lógica, que não põe em causa a Constituição e que pode melhorar uma verdadeira ação contra, eu diria, a vigarice, que é uma questão que existe e não é apenas exclusivo deste ou daquele cargo político.
É possível ainda nesta legislatura melhorar a lei para tipificar o enriquecimento injustificado?
Com a actual lei já é obrigatório que os titulares de cargo que referi façam as declarações de rendimento e património. Acontece que há uma Entidade de Transparência que ainda não foi instalada - parece que vai ser instalada em Coimbra - e que depende do Tribunal Constitucional. Os deputados dos vários partidos insistiram muito para que essa entidade seja rapidamente instalada. É a entidade que terá que lidar com essas declarações de rendimento e património e não faz sentido que tenha sido criada e não tenha sido instalada. O relatório do Greco, que é o grupo internacional que estuda a evolução da corrupção nos diferentes países, o relatório do Conselho da Europa considera positiva a evolução de Portugal no que diz respeito ao cumprimento das recomendações sobre o tema da prevenção da corrupção. Este segundo relatório intercalar concluiu mesmo que o nível de cumprimento das recomendações já não é considerado "globalmente insatisfatório", como aconteceu no relatório anterior. Portanto, deixou de ser aplicada a regra relativa a Estados considerados em situação de não conformidade e que implicava um acompanhamento mais pormenorizado por parte do Greco. O que quer dizer que, de certa maneira, há quem, sem querer, faça o jogo de todos os populismos, sobretudo os dos nacionalismos de extrema-direita, ao estar a gritar "corrupção, corrupção, corrupção" quando os organismos internacionais que fiscalizam o Estado e o funcionamento da sociedade portuguesa não provam nada disso.
Mas neste caso temos o Presidente da República a dizer que é urgente legislar e há condições.
Mas com o que o senhor Presidente da República diz sobre essa matéria eu estou perfeitamente de acordo. Há condições para melhorar e fazer leis mais ativas e mais capazes de acabar com todas as vigarices em todos os planos da vida pública portuguesa e que isso pode ser feito sem pôr em causa os princípios constitucionais da presunção da inocência e da inversão do ónus da prova.
Há condições para aprovar uma proposta como a da Associação Sindical de Juízes?
Não sei se será a proposta exatamente. Quando se faz a proposta aquilo que se pretende é que seja discutida e que seja incorporada tanto quanto é possível na decisão maioritária do Parlamento. Penso que é um bom contributo.
É Presidente da Assembleia até ao final do mandato, isso é certo. E depois?
Bem, isso é a saúde que comanda. Espero ser. Como sabem tive alguns problemas, espero que tenham sido definitivamente resolvidos mas nunca se sabe. Dentro desta linha de realismo, com menos optimismo do que o senhor primeiro-ministro ou o senhor Presidente da República a todos os níveis... Eu sou tão pouco optimista que embora venha de gravata verde ainda não estou seguro de que o Sporting vá ser campeão (risos). Depois tenciono dedicar-me aos meus netos, à minha família. Se a legislatura acabar em tempo normal...
Ah, tem dúvidas...
Há sempre dúvidas em democracia... Se acabar em tempo normal terei 74 anos. É uma boa idade para passar à verdadeira reforma. Reformei-me da Caixa Geral de Aposentações há muitos anos mas nunca recebi um tostão, nem das reformas dos cargos políticos. Espero que tudo isso ainda exista na altura em que me reformar daqui a dois anos. Conto ter uma vida mais pacata. Não deixarei de ter uma intervenção quando julgar indispensável porque não é de um dia para o outro que se deixa de ser interveniente na vida política. E sobretudo se houver algum perigo para o regime democrático podem sempre contar comigo na primeira fila.