13 mai, 2021 • Eunice Lourenço (Renascença) e Ana Sá Lopes (Público)
Cecília Meireles defende que o CDS se deve opor a nova injeção de capital no Novo Banco enquanto os "incumprimentos contratuais" que a auditoria do Tribunal de Contas identificou não forem sanados. Em entrevista à Renascença e ao Público, a deputada que acompanhou as várias comissões de inquérito ao BES e agora faz parte da comissão de inquérito ao Novo Banco acusa Mário Centeno de hipocrisia na questão dos prémios para os gestores e diz que o atual governador do Banco de Portugal está numa posição “frágil”.
Parece ter assustado Luís Filipe Vieira quando lhe disse que ele era o segundo maior devedor do Novo Banco. Surpreendeu-a a reação?
Surpreendeu-me no sentido que me pareceu inusitado. Habituei-me nas comissões de inquérito a lidar com o inusitado e com as reações mais inacreditáveis. À pergunta tão simples "quanto é que deve ao Novo Banco?" vemos que muitas vezes os devedores não conseguem responder. Não sabem a ordem de grandeza da dívida.
É tão grande, tão grande que...
Não há um sentimento de responsabilidade. Acho normal que quando se vai para uma comissão de inquérito se leve as coisas a sério. Eu nem dei uma informação que fosse uma novidade com os dados que são públicos. A absoluta leveza com que se fala de centenas de milhões de euros como se não fossem responsabilidade de ninguém é surpreendente no mau sentido. Mais do que surpreendente diria que é chocante. É de uma absoluta leviandade falar de dívidas de centenas de milhões que contribuíram para a ruína de vários bancos.
Já na Caixa Geral de Depósitos vimos isto. Desde as faltas de memória até aos desconhecimentos, até às pessoas que não têm património – o que não foi o caso de Luís Filipe Vieira, mas já foi o caso em outros momentos – é sempre chocante.
O mesmo Luís Filipe Vieira disse que quem assinou o contrato de venda do Novo Banco devia ser "enforcado". Suponho que não partilha esta opinião, mas, do que se vai sabendo, como é que fica a imagem do atual governador do Banco de Portugal, ex-ministro das Finanças?
Há várias responsabilidades. Não me parece que quem está na posição de grande devedor deva tecer críticas, muito menos nesses moldes que não me parecem adequados a ninguém. Isto dito, a situação do governador do Banco de Portugal é extraordinariamente frágil. Isto era um acidente à espera de acontecer.
Quando Mário Centeno é nomeado governador do Banco de Portugal já se sabia que ele era o principal responsável pela venda do Novo Banco. Aquilo que foi dito na altura pelo primeiro-ministro, de que não haveria qualquer impacto direto ou indireto no erário público, era flagrantemente falso. E quando se põe a mesma pessoa, por um lado, a ser supervisor e, por outro, defensor de uma decisão política que tomou num passado recente e tem impacto na supervisão. Vamos ser francos: o Tribunal de Contas dizia isto...
Não tem a ver com as pessoas estarem a defender interesses contraditórios, tem a ver com o facto de estarem numa situação de incompatibilidade. O interesse do Governo de Portugal, como é óbvio, é que a estabilidade do sistema financeiro seja feita com o mínimo recurso ao erário público. Ou seja, é gastar o mínimo dinheiro possível para que o banco sobreviva. O interesse do supervisor é que o banco esteja o mais capitalizado possível. São dois interesses contraditórios! E a mesma pessoa ao pôr-se numa posição e noutra – ao ter que, enquanto governador, defender o seu passado como ministro das Finanças, coloca-se numa situação difícil. Perante uma auditoria do Tribunal de Contas que diz coisas muito graves. Diz que o financiamento, que é óbvio, é público. Explica o funcionamento desequilibrado do que foi contratado no mecanismo de capital contingente. Diz que há incumprimentos contratuais. Diz que o Fundo de Resolução não está a verificar aquilo que deveria a verificar.
E o que o governador do Banco de Portugal tem para dizer é que foi salvaguardada a estabilidade do sistema financeiro. Não dá sequer uma resposta material. Ainda está com o "chip" de ministro que é "qual é a narrativa? É preciso controlar a narrativa". Não é preciso controlar a narrativa, é preciso é dar explicações.
O que assistimos foi Centeno governador a defender Centeno ministro?
Claro. E isto era previsível que fosse acontecer. Acho que foi Centeno governador a defender Centeno ministro e Centeno governador a defender António Costa primeiro-ministro. O decisor último foi o primeiro-ministro. A frase mais clamorosa deste processo todo é do primeiro-ministro, a de que não iria haver impacto direto ou indireto nos contribuintes. O Tribunal de Contas vem dizê-lo, mas isso nós já sabíamos.
Claro que se todos os anos há uma injeção do Fundo de Resolução e o Fundo de Resolução vive de empréstimos que o Estado lhe dá, é evidente que há financiamento público. Agora, o mecanismo de capital contingente. É um palavrão usado para designar o mecanismo através do qual o Fundo de Resolução tem que pôr dinheiro no Novo Banco. É em si desequilibrado. E isso o Tribunal de Contas vem dizer e merecia uma explicação, porque o Governo aceitou e negociou esta venda.
Acha que a auditoria valida uma nova injeção no Novo Banco ou não?
Não. A auditoria identifica incumprimentos contratuais. O primeiro-ministro tem de vir dar explicações. Tem de dar explicações acerca das garantias de que não haveria financiamento público e tem de dar outro tipo de explicações. O primeiro-ministro, aquando da aprovação do Orçamento, disse que os contratos são para cumprir. E agora vem o Tribunal de Contas e explica que o Fundo de Resolução não está a fiscalizar como devia se o Novo Banco está a cumprir ou não. Não é só do lado do Estado que os contratos são para cumprir. É também do lado do Novo Banco.
Como também tem de explicar algumas coisas sobre este mecanismo de capital contingente. Eu já nem vou ao facto de o contrato que o Estado português tem de cumprir estar redigido em inglês. Acho que o mínimo que se pode pedir é que quando se vincula o Estado a um contrato este esteja em língua portuguesa.
Explique-nos o que é o mecanismo de capital contingente.
O mecanismo de capital contingente é um mecanismo que diz que se o capital do Novo Banco descer abaixo de um determinado limite e houver perdas num conjunto de ativos, então o Estado tem de repor o capital. Tem de fazer uma entrada de dinheiro. Este mecanismo sempre foi suposto funcionar com o Estado a meter dinheiro no Novo Banco. É evidente que se o Estado diz ao Novo Banco "meus senhores, se perderem dinheiro em determinados ativos nos próximos anos e o vosso rácio de capital descer abaixo de determinados limites, nós aqui estamos, nós pomos o dinheiro", se isso acontecer daqui a 10 anos, daqui a 15 anos, se os senhores quiserem correr o risco de recuperar esses ativos, o risco corre por vossa conta porque nós nessa altura já não vamos meter dinheiro".
É evidente que os incentivos estão todos lá para que isto seja utilizado ao máximo. O incentivo está lá para que o Novo Banco queira resolver o máximo possível de crédito malparado neste momento. E como se resolve rapidamente um problema de crédito malparado? Vende-se ao preço que alguém estiver disponível para pagar.
A própria Comissão Europeia, não tenho dúvidas, pressionou para que isto acontecesse porque quer tirar o crédito malparado dos bancos portugueses. O que eu não percebo é porque é que não foi dito com transparência aos portugueses "este banco vai custar mais quatro mil milhões de euros". Ou pagávamos agora ou nos próximos cinco anos. Escolhemos pagar nos próximos cinco anos.
"O Governo diz que não há dinheiro para dar à econ(...)
O CDS vai opor-se a nova injeção?
Enquanto o Tribunal de Contas não acautelar que está a haver cumprimento, nós evidentemente não podemos aceitar a lógica de cumprir contratos. Se os incumprimentos que o Tribunal de Contas invoca forem sanados, obviamente temos que também tirar daí consequências.
Mas o Banco de Portugal disse que foram sanados....
O Banco de Portugal é parte, o Tribunal de Contas é um tribunal. Que eu saiba o Banco de Portugal ainda não é um tribunal. Sendo justa, eu acho que incumprimentos são sanáveis. Mas enquanto houver dúvidas e sobretudo enquanto não houver explicações, acho difícil [aceitar nova injeção]. Mas eu também não acho aceitável que o primeiro-ministro ao mesmo tempo diga "está aqui um mecanismo, mas não vai ser utilizado" e que depois venha dizer que se têm de aprovar injeções porque os contratos são para cumprir. Nós não podemos entrar numa lógica de discursos políticos em que o que importa é a narrativa mesmo que ela não tenha nenhuma adesão à realidade. Isto não pode continuar porque mina a confiança nas instituições.
Há aqui duas coisas que o Governo vai também ter de esclarecer que é o chamado mecanismo de capital backstop. Traduzindo: se tudo correr mal, que se depois de lá pormos 3.890 milhões de euros ainda assim o Banco tiver dificuldades, o Estado português comprometeu-se com a Comissão Europeia a meter lá mais 1.600 milhões de euros. E esta conta ainda não estava feita e também vem na auditoria. Todos compreenderão que isto foi tudo menos assumido. Foi tudo feito por baixo do pano.
E outra questão que a auditoria levanta é, se na altura em que isto foi negociado, teria sido ou não possível apresentar [o projeto de venda] a outros concorrentes que estivessem interessados em apresentar condições melhores. O Tribunal de Contas diz que não encontra vestígios de isto ter acontecido. Eu acho que é uma dúvida que não pode ficar a pairar. Isto é fundamental! Havia alguém disponível para comprar o banco em melhores condições ou não? É a pergunta-chave. O mínimo que se pode pedir é que o ministro das Finanças da altura diga se fez ou não fez [negociações para encontrar melhor comprador].
Quando o Tribunal de Contas fala em "risco moral" a que é que se refere?
Muita coisa. Mas acho sobretudo que tem a ver com o mecanismo de capital contingente, que é desequilibrado. E é desenhado para que estas injeções aconteçam. O Tribunal de Contas faz aqui uma análise jurídica impressionante. É evidente que este mecanismo era para ser utilizado.
Uma das recomendações que o Tribunal faz é que haja maior clareza entre separação de funções entre Governo, Banco de Portugal, Fundo de Resolução, consultores. Já falámos aqui do ex-ministro das Finanças ser governador do Banco de Portugal. Onde mais não houve separação de funções?
O Fundo de Resolução, enquanto acionista do banco, é evidente que quer contribuir com o mínimo possível. O Banco de Portugal está preocupado com que o banco seja estável. Quantos mais altos forem os rácios, melhor. Mas há muitas outras coisas desde a auditora que audita várias entidades que têm interesses objetivamente contraditórios até aquilo que se descobriu ontem de que até o próprio assessor financeiro do Banco de Portugal na venda do Novo Banco é, hoje em dia, presidente do Conselho de Administração da dona do Novo Banco! É impossível não ficar com a sensação de que tudo isto é feito para ser opaco. Se não fosse feito para ser opaco não havia necessidade nenhuma de todas estas construções. É evidente que não é normal que quem está a fazer a análise da proposta de capital contingente e de quanto é suposto o Estado gastar ou não apareça três anos depois a ser presidente do conselho de administração do comprador!
Tudo isto cria uma degradação da perceção da opinião pública que é muito grave. É que não é só uma perceção. Eu não sou dada a teorias conspirativas, mas por mais que se queira acreditar na boa-fé de tudo isto torna-se muito difícil.
Defendeu que Mário Centeno deveria ter acautelado no contrato que não haveria prémios para os gestores enquanto houvesse prejuízos. Acha que agora quando o PS e o Governo se vêm lamentar são lágrimas de crocodilo?
Há uma enorme hipocrisia política na questão dos prémios. Se a questão era essencial, então tinha de ficar acautelada no contrato. Estar agora a entidade que negoceia o contrato muito indignada por haver prémios, podia ter acautelado. Mas mais importante dos que os prémios estou interessada em saber porque é que eles são atribuídos. E até que ponto a atribuição dos prémios tem a ver com a limpeza rápida deste tipo de ativos. Porque se tem, isso quer dizer que mesmo quando o banco dá prejuízos, desde que esteja a limpar ativos, é um bocado indiferente para a Lone Star se dá prejuízos ou não, porque depois os prejuízos vão ser cobertos pelo tal mecanismo de capital contingente.
É importante perceber qual é a lógica da atribuição destes prémios. Se tiverem a ver com a velocidade a que os ativos estão a ser vendidos então isto significa que há uma relação entre os prémios e o dinheiro que nós pomos no Novo Banco. E isso é particularmente perturbador. Quer dizer, quanto mais depressa forem pedidas mais injeções de capital, tendencialmente maiores serão os prémios.
Estamos a pagar duplamente?
Estamos a pagar duplamente e estamos a pagar o facto de não ter havido a transparência de dizer que foi criado um mecanismo para isto acontecer. O mecanismo de capital contingente é criado para ser utilizado. Aliás, o Tribunal de Contas dizia uma frase que acho que foi a frase mais basilar: "Nós achávamos que 3.890 milhões de euros era o máximo e afinal, quando analisamos isto, percebemos que é o mínimo". E é verdade.
Era preferível ser o Estado a fazer isto do que estar a pagar à Lone Star para o fazer?
Do ponto de vista da capacidade do Estado, sim era. Resta saber se o faria de uma forma mais barata ou mais cara. Eu não tenho certeza absoluta de que o Estado o faria de forma mais barata. A segunda questão é se seria possível.
Uma das coisas que se nota aqui é também a visão da Comissão Europeia. A Comissão Europeia acha que os bancos devem ser limpos rapidamente e devem sair da esfera do Estado. A Comissão Europeia também tem aqui um papel que, do ponto de vista português, não é de salvaguarda do erário público e dos contribuintes. É preciso termos essa consciência. Eu estou até convicta que a visão da Comissão é muito cética em relação à existência de bancos portugueses. Tendencialmente tenderá a defender a concentração dos bancos, pelo menos na Península Ibérica.
É preciso percebermos que isto é um problema e como é que nos defendemos desta visão europeia. Acho que temos interesse estratégico em ter bancos portugueses.
Polémica do Novo Banco dominou parte do debate bim(...)
Ainda sobre a questão de separação de funções que o Tribunal recomenda entre Banco de Portugal, Fundo de Resolução, é uma questão de legislação ou bom senso?
Acho que estas questões são acima de tudo de bom senso, que é um bem muito mais escasso do que a legislação e a regulação, infelizmente.
Acha que o Parlamento vai ter de legislar depois desta comissão terminar os seus trabalhos?
Em alguns acertos. Mas acho que nos enganamos todos se imaginamos que com legislação resolvemos a parte essencial dos problemas.
Qual foi até agora a maior revelação da Comissão?
Há dois grandes momentos: o relatório Costa Pinto e o papel do Banco de Portugal. Foi bom ter visto lá escrito muitas das críticas que o CDS tinha feito ao longo dos anos. Não foi uma revelação, mas foi pesado. E agora esta análise do mecanismo do capital contingente do Tribunal de Contas, não sendo uma revelação, dão-me factos que sustentam aquilo de que instintivamente já suspeitava. A comissão de inquérito permitiu saber quem eram os grandes devedores, saber como é que os ativos andam a ser vendidos.
O presidente do PSD anunciou que vai fazer uma queixa ao Ministério Público sobre a venda do Novo Banco. Acha que deve ser feita?
Eu esperava pelo fim da comissão. O caso do BES está ainda a ser investigado. Podemos mandar tudo para o Ministério Público, mas se depois os processos nunca mais acabam isso tem pouca eficácia. Neste caso, o que me parecia fundamental era que pelo menos a parte que diz respeito ao BES pudesse chegar a julgamento. Talvez isso restaurasse alguma confiança na justiça. O que foi apurado na última comissão de inquérito [ao BES] já dá um julgamento com condenações.
Nestas comissões de inquérito como a do BES a política tem andado mais rápido do que a justiça e tem ajudado a justiça?
Acho que tem ajudado a justiça. Tem andado mais rápido e é normal que ande mais rápido. O processo penal tem exigências de prova que não existem numa comissão de inquérito.
A entrevista pode ser ouvida nesta quinta-feira, na Renascença, depois das 23h00.