10 jun, 2021 • Eunice Lourenço (Renascença) e Helena Pereira (Público)
Augusto Santos Silva diz que António Costa não pode ir para qualquer cargo europeu, porque é primeiro-ministro de Portugal e sabe quais são as suas responsabilidades.
Em entrevista à Renascença e ao Público, o ministro dos Negócios Estrangeiros faz o balanço de quase seis meses de presidência portuguesa do Conselho da União Europeia e lamenta que neste período não tenha sido possível ir tão longe em matéria de migrações quanto a Europa precisa. Sobre a relação com o Reino Unido, Augusto Santos Silva diz “não ter sido fácil”. Daí a incerteza sobre a adesão daquele país ao certificado verde para viagens na União Europeia.
Esta semana ficou marcada por um “equívoco” da Espanha. Já é a terceira vez que a Espanha avançou com medidas sem se coordenar com Portugal. Como é que isto se explica?
Relativamente à gestão da fronteira comum, seria a primeira vez.
Houve, no passado, um anúncio unilateral de abertura de fronteiras, a imposição de uma quarentena sem avisar Portugal.
Não confundamos as coisas. No que diz respeito à fronteira terrestre comum, temos a boa prática de geri-la de forma coordenada. Este equívoco ou lapso tem razões que todos compreendemos. Foi uma resolução da DGS espanhola que não terá alcançado suficientemente que a gestão de uma fronteira não é apenas uma questão sanitária, mas também político-administrativa. Da minha parte, só tenho de agradecer a prontidão com que as autoridades espanholas reagiram ao meu pedido de esclarecimentos e como decidiram imediatamente superar este equívoco.
O acumular de situações não revela uma reiterada falta de respeito das autoridades espanholas?
Não. Este episódio mostra que falamos uns com os outros, sabemos coordenar-nos, não escondemos as questões difíceis que sempre vão surgindo entre vizinhos e que as conseguimos resolver facilmente. As declarações da ministra do Turismo [de Espanha] a que se refere há um ano foram um deslize, na ânsia de comunicar uma boa notícia, porque a abertura de fronteiras implica também uma decisão de abertura da parte de Portugal.
Há aqui algum desespero ou precipitações dos países, ao fim de tantos meses a lidar com a pandemia?
Não lhe chamaria desespero. Faço minhas as palavras do Presidente da República de que é natural que, dado o nível de tensão que temos, a necessidade de ir acompanhando ao minuto a evolução da pandemia, as novas dificuldades com que nos deparamos, como as variantes, cometamos erros. A política é feita por seres humanos e não por seres divinos.
Temos tido nesta pandemia mais problemas com os vizinhos espanhóis e com os nossos mais antigos aliados do que com qualquer outro país.
Infelizmente, o Reino Unido abandonou a UE, portanto, tem a sua própria política nas diferentes áreas. Em matéria de viagens, tem esta posição, excessiva e não fundada nos factos, segundo a qual todos os países-membros da UE são destinos inseguros. Parece-me ser um problema da grelha de análise e da lógica de decisão do Reino Unido.
No caso de Espanha, foi possível Portugal chamar à razão. No caso do Reino Unido, não está a ser fácil?
O Reino Unido tem um processo de decisão peculiar, decidiu fazer revisões de três em três semanas...
E pelo meio inventaram uma nova variante, a nepalesa, que a OMS ainda não reconhece.
Não acho que o verbo inventar seja adequado. O que digo é que esse facto não tem a relevância analítica que justifique uma alteração da posição britânica.
Tendo em conta tudo isto, acha que o Reino Unido tem vontade em aderir ao certificado verde europeu de vacinação?
Este certificado será o melhor instrumento para repor gradualmente Schengen, a liberdade de circulação e o funcionamento das atividades económicas. Já estamos a conversar com a Suíça e os EUA e estamos a tentar conversar com o Reino Unido na hipótese do reconhecimento mútuo das respetivas vacinações.
Porque diz que com o Reino Unido só estão a tentar falar?
As conversações com Suíça e EUA estão mais adiantadas. A relação entre a UE e o Reino Unido nestes primeiros meses pós-Brexit não tem sido fácil. Este foi um divórcio muito peculiar. Divorciamo-nos para iniciar imediatamente uma nova relação.
Qual é o balanço que faz da presidência portuguesa da UE que agora está a terminar ou qual é a marca que deixa?
Há muitas marcas. Quantas quer? Cinco? Primeiro, a organização da cimeira social no Porto e a aprovação do compromisso social. Foi a primeira vez que Parlamento Europeu, Comissão Europeia e todos os parceiros sociais europeus assinaram um acordo social geral sobre emprego, formação e proteção social. Segundo, a aprovação de todos os programas que materializam o quadro financeiro plurianual dos próximos sete anos. Terceiro, foi ratificada a decisão sobre recursos próprios da UE por todos os Estados-membros. Quarto, aprovámos a primeira lei europeia do clima. Quinto, foi também na presidência portuguesa que se realizou pela primeira vez uma reunião de líderes UE-Índia com a participação de todos os 27 Estados-membros da UE.
Recentemente, tivemos aqui o eurodeputado Pedro Marques a defender apoios directos a famílias e desempregados para além do Plano de Recuperação e Resiliência. Acha que isso seria desejável ou possível?
É uma discussão muito interessante no plano teórico e analítico. A minha opinião é divergente. Não sou grande fã das teorias do “dinheiro de helicóptero”. Percebo que isso tenha um dinamismo inicial para suscitar a reanimação do consumo e que países com situações orçamentais folgadas possam usar esse recurso. No caso português não recomendaria nada, porque temos de gerir esta recuperação nunca perdendo de vista que temos uma grande proporção da dívida pública sobre o PIB e, portanto, a disciplina orçamental parece-me ser uma condição sine qua non da nossa recuperação.
E o que ficou por fazer desta presidência portuguesa?
Há muita coisa que fica por fazer. O dossier em que talvez venhamos a avançar menos há-de ser o das migrações. Concluímos o primeiro ato legislativo sobre migração legal dos últimos cinco anos, mas não vamos tão longe quanto queríamos e a Europa precisava.
O que é que a Europa precisava?
Em primeiro lugar, apoiar muito mais os chamados “Estados da linha da frente”. Não é possível que a Itália, Grécia, Chipre, Malta, Espanha tenham hoje um fardo muito desproporcional, porque são os mais pressionados pelas migrações e fluxos de refugiados. O apoio a esses Estados, acolhendo migrantes e refugiados, neste momento é feito numa base voluntária e precisamos de um mecanismo que não dependesse do voluntariado, mas que fosse aceite por todos. Precisamos também de trabalhar mais com os países de origem e de trânsito das migrações e de avançar mais em canais de imigração legal, porque esses são a verdadeira alternativa à imigração irregular.
Pedro Marques também dizia que António Costa pode fazer o que quiser na UE. Concorda com esta parte?
Não. António Costa não pode fazer o que quiser na UE.
Não? Porquê?
Porque é primeiro-ministro do XXII Governo português que vai até 2023. Recandidatou-se a secretário-geral do PS. Todos sabemos quais são as nossas responsabilidades.
E acha que deve ser o candidato a primeiro-ministro em 2023?
Essa questão terá de ser discutida não neste congresso, que será sobre as autárquicas, mas no próximo. As legislativas ainda vêm longe.
Pensava que ia dar a sua opinião pessoal.
António Costa tem todas as condições para levar até ao fim o seu mandato como primeiro-ministro. Não vejo que seja politicamente útil que alguém procure através de uma coligação absolutamente espúria impedir o normal ciclo político que Portugal vive. Também não tenho a mínima dúvida de que será um excelente candidato a primeiro-ministro nas eleições de 2023.
Está a dizer então que não haverá risco de acontecer com o PS o que aconteceu com o PSD que substituiu um primeiro-ministro, Durão Barroso, a meio de um governo.
Eu não falo pelo PS.
Há três anos, no último congresso, já parecia que se estava a preparar a sucessão, de tal maneira que teve de ser o próprio Costa a dizer que não estava para sair. Não é tempo agora de começar a preparar essa sucessão?
Como o próprio já disse, Costa não procede enquanto líder do PS como se fosse um eucalipto, mas exatamente ao contrário. Cria sempre as condições para que jovens quadros mostrem o que valem e possam fazer o seu caminho. Quando chegar a altura própria, quem cá estiver decidirá.
Pedro Nuno Santos já anunciou que não vai apresentar moção ou intervir no congresso do PS. No último congresso protagonizou com ele um dos momentos mais vibrantes do congresso. Tem pena que não haja um debate mais vivo?
Não podemos estar sempre a repetir os mesmos debates. Há três anos, era importante uma certa clarificação ideológica, mostrar que a fórmula política liderada pelo PS não significava que o PS se estivesse a mover da posição doutrinária que é a sua: centro-esquerda e esquerda democrática. Este congresso é bastante diferente, lida com uma batalha política imediata que são as autárquicas.
Essa clarificação ideológica está feita e não é preciso voltar a ela?
Não sinto necessidade e tenho observado que muitos outros no PS não sentem como eu essa necessidade de um debate mais doutrinário.
O ministro Pedro Nuno Santos nas últimas semanas teve algumas intervenções que causaram mal-estar no PS. A si não? Não achou que iam contra esse posicionamento ideológico que ficou definido?
Com todo o respeito que tenho por essa nova geração do PS, permitam-me reservar para mim a posição de alguém que não tem de comentar os comportamentos ou declarações de outros, nem que seja por uma espécie de privilégio de veterania. Eu já não estou na fase de ser um dos noivos, mas na fase de ser um dos avós.
O deputado Pedro Delgado Alves defendeu que o congresso fosse também aproveitado para o PS fazer uma catarse em relação ao caso Sócrates. Acha que o congresso deve servir para isso?
Felizmente este é um país livre e o PS também. Não recomendo nada aos partidos democráticos lógicas de revanchismo, catarse, penitência, actos de contrição, nem muito menos tentativa de imposição de uma leitura única ou oficial da história recente. Isso são práticas estalinistas.