10 fev, 2022 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Maria Lopes (Público)
Liderança parlamentar do PCP "pode perfeitamente" ser entregue a uma mulher, admite António Filipe em entrevista ao programa Hora da Verdade. Sobre Marcelo, o deputado comunista afirma que desejava um “bloco central informal” e que a maioria absoluta do PS acaba por ser um tiro no pé.
O líder parlamentar não foi reeleito, o vice-presidente do Parlamento não foi reeleito. Houve uma falha na estratégia do PCP? O partido apostou mal nos distritos onde colocou as suas peças chave?
Não, houve um veredicto eleitoral que temos de respeitar. Ou seja, sabia-se que em determinados círculos eleitorais a eleição não era fácil, que o risco de não reeleição existia, mas o partido decidiu - e bem - assumir esse risco. Não podemos ter medo dos eleitores. Temos de nos submeter ao eleitorado, assumindo as nossas responsabilidades e a democracia. Há momentos em que se ganha e em que se perde. O objectivo era que fossem eleitos; não foram e agora temos de procurar soluções para que a voz do PCP na Assembleia da República (AR) continue, embora com menos capacidade interventiva em termos quantitativos, mas o importante é que a voz do PCP continue activa
A não eleição de deputados de Os Verdes nestas legislativas acaba com a CDU?
Nas autarquias locais a CDU é uma coligação permanente e manter-se-á. Na Assembleia da Republica dava lugar a dois grupos parlamentares distintos. Neste caso, infelizmente, só haverá um. A CDU vai manter-se enquanto coligação eleitoral.
É previsível que o PCP possa libertar-se dessa aliança que, pelos vistos, não somou nada?
Eu creio que acrescenta, creio que a perda da CDU é comum. Não dissociamos na CDU o PCP de Os Verdes, são dois partidos que integram a coligação embora com um peso diferente. Infelizmente, os deputados do PEV não foram reeleitos, mas a cooperação entre os dois partidos vai manter-se e creio que não está em cima da mesa desfazer essa coligação. O PEV deixa obra feita no Parlamento, de luta por várias causas no direito do ambiente...
A centralidade do Parlamento perdeu-se com esta maioria absoluta. O PCP volta a ser um partido de protesto, de contestação nas ruas?
O PCP nunca foi só um partido de protesto: protesta quando acha que deve protestar, mas também é um partido de proposta e de construção de soluções, capaz de fazer convergências. Em diversas autarquias e a nível nacional – aliás, uma das lições dos últimos seis anos passou por aí.
Acredita que esta legislatura vai até ao fim, tendo em conta a contestação social que é previsível. O Governo não vai ressentir-se desse desgaste e deitar a toalha ao chão?
Não estamos a pensar que a legislatura não vá até ao fim, as legislaturas em princípio vão até ao fim – excepto quando não vão (risos). Já tivemos maiorias absolutas que não foram até ao fim, mas por outras razões. Creio que haver mais ou menos contestação depende da política do Governo, não é uma coisa que surge automaticamente, porque um partido decide que vai haver contestação. Há contestação quando há razões objectivas para haver e mais: quando as pessoas estão dispostas a agir.
Mas o PCP continua a dizer que há muitas razões para essa contestação…
E tem havido. Há muitos problemas que não estão resolvidos. Há formas diversas de contestar, e estamos a falar de contestação feita nos termos democráticos. Não estamos a falar de arruaças ou de formas de manifestação à margem dos direitos democráticos. Havendo razões de contestação, ela certamente surgirá e aí naturalmente que os comunistas estarão com as populações e os trabalhadores, e procurando levar as suas reivindicações aos órgãos de poder e à AR.
Há poucos dias, o ainda líder parlamentar disse que o PCP não vive só do voto e dos eleitores, mas sim dessa ligação directa aos trabalhadores. Isto não é contraditório? Como é que se influenciam as políticas? Através de uma contestação que chegue ao ponto da arruaça para ter efeito no Governo?
Não é contraditório, são duas coisas perfeitamente conciliáveis. Felizmente em Portugal, pelo facto de termos uma central sindical como a CGTP - que é combativa, defende sem vacilar os direitos dos trabalhadores, mas que o faz de uma forma perfeitamente organizada e dentro do quadro democrático - não assistimos a degeneração em violência e actos de vandalismo e devemos estar muito gratos ao movimento sindical por isso não acontecer.
A quem é que o PCP vai fazer oposição no Parlamento? À direita ou ao PS com maioria absoluta?
Por definição, no quadro parlamentar, as coisas dividem-se entre Governo e oposição. Mas há oposições diferentes.
E qual vai ser a oposição do PCP?
Será uma oposição pela esquerda relativamente ao Governo, muito diferente da oposição que os partidos da direita quererão fazer. O que não quer dizer que, por vezes, essa contestação não incida sobre o mesmo objecto. Ou seja, podemos manifestar a nossa oposição a um diploma ou algum aspecto da política do Governo por razões inteiramente diferentes. Por isso, às vezes, há comparações que não fazem nenhum sentido, como dizer ‘ah, mas o PCP juntou os seus votos ao PSD ou ao CDS’. Bom, mas por razões completamente diferentes. Não há Governo e oposição; há Governo e oposições. E no quadro de maioria absoluta socialista haverá oposições de sentido diverso.
Que papel deverá ter o Presidente da República nestes 56 meses?
O Presidente certamente continuará a falar muito ao país, porque é a sua natureza, mas há um dado que é objectivo: em situações de maioria absoluta, o seu papel no sistema político fica diminuído na medida em que os vetos presidenciais não têm o mesmo alcance.
E o que espera ouvir de Marcelo?
A previsão que faço é que continue a falar tanto como fazia antes e como fazia antes de ser Presidente. Teve agora um período em que não fez declarações públicas durante a campanha eleitoral, embora tenha feito um apelo ao voto no dia anterior às eleições com um conteúdo muito discutível. Não estou a prever que queira diminuir a sua intervenção pública. Até a recepção à selecção portuguesa de futsal serviu para enviar recados sobre a aplicação dos fundos europeus. A história da democracia tem demonstrado que em situações de maioria absoluta assistimos a um menor protagonismo do papel do Presidente da República no sistema político e creio que isso é incontornável e certamente acontecerá.
Além de ter ajudado o PS ao dissolver o Parlamento, afinal acabou por se prejudicar a si próprio?
O sentido geral da sua intervenção pública apontava muito para a existência de um bloco central informal. Ou seja, não havendo maioria absoluta - porque ela de facto não estava nas previsões –, haver um Governo do PS que contasse com a complacência do PSD ou um Governo do PSD que contasse com a complacência do PS.
Diria que deu um tiro no pé?
Ia muito nesse sentido. Provavelmente os resultados eleitorais escaparam às previsões do PR como escaparam às de toda a gente.
A actual legislatura ainda não terminou - estamos a dias do final. António Filipe ainda é deputado e vice-presidente da Assembleia. Imagino que não veja com maus olhos um deputado do Chega desejar ocupar esse lugar institucional?
Esse é um daqueles não assuntos com que no nosso país nos entretemos muito, porque eu também nunca fui eleito por unanimidade.
Mas teve os votos suficientes…
Tive. Mas nunca nenhum deputado foi coagido a votar numa candidatura, seja a presidente da Assembleia seja a vice-presidente. O dr. Fernando Nobre (PSD) nem os votos do CDS teve e acabou por ter de retirar a candidatura. Os candidatos a vice-presidentes da AR, indicados pelos grupos parlamentares que têm direito a fazê-lo, são submetidos ao voto dos seus pares e ou são eleitos ou não são.
É a democracia a funcionar…
Isso é que é a democracia a funcionar. A ideia de que como há um partido que tem o direito de apresentar um candidato, os outros têm a obrigação indeclinável de votar nele… a democracia não funciona assim. Os deputados não votam sob coação. Que eu me lembre nunca nenhum candidato a um desses cargos foi eleito por unanimidade. Imagino que os votos que eu não tive terão sido maioritariamente de deputados dos partidos à direita que não votaram na minha candidatura e eu acho isso perfeitamente normal. E, portanto, também acho perfeitamente normal possa haver candidatos que não tenham o número de votos necessários para ser eleitos.
Já presidiu a uma comissão eventual de revisão constitucional. Julga que nesta legislatura vamos ter a revisão constitucional que já devia ter sido feita na segunda legislatura de José Sócrates?
Poderia ter sido, mas não digo deveria.
Não há nada para actualizar na nossa Constituição?
Poderá haver, mas creio que os partidos que ameaçam há muitos anos avançar com um processo de revisão constitucional não o fazem a pensar em aperfeiçoamentos necessários mas fazem-no sobretudo a pensar na alteração de aspectos profundos, designadamente no domínio social. O PSD tem insistido na necessidade da revisão e aquilo que propôs em 2011 foi um retrocesso profundo em matéria de Estado Social, na área da saúde e na área laboral. A direita nunca conseguiu alterar o essencial das posições constitucionais que defendem os direitos dos trabalhadores.
Receia que o PS dê essa mão ao PSD, como quase aconteceu na lei de bases da saúde e tem acontecido na lei laboral?
Esse perigo existe e creio que o PS, menos condicionado pelos partidos à esquerda, pode ceder à tentação. Tem sido o PS a dar o seu acordo a objectivos prosseguidos pelo PSD – e é inevitável porque são precisos dois terços dos deputados - e por isso as revisões constitucionais têm-se traduzido em retrocessos. Inviabilizaram a regionalização ao fazerem depender a criação das regiões administrativas de um referendo armadilhado e atípico; em 1989, abriu o processo de privatizações e a saúde deixou de ser gratuita para ser tendencialmente gratuita.
Os partidos que perderam representação parlamentar - BE, PAN, CDS e até mesmo o PSD - estão a começar uma reflexão interna sobre as lideranças. À excepção do PCP. O problema não é a liderança?
A reflexão faz-se sempre. O problema da liderança no PCP não está colocada em cima da mesa. Há partidos para quem a liderança é o alfa e o ómega da sua intervenção política e fazem depender tudo da liderança, numa forma quase futebolística de entender a vida política: a equipa joga mal, muda-se o treinador. O PCP não tem essa concepção, a sua forma de funcionar implica uma participação muito activa dos militantes, uma reflexão conjunta sobre o caminho que deve seguir. Quando se entender que existe a necessidade de equacionar esse problema, discute-se.
Não há nada que o PCP tenha que mudar na sua estratégia?
Na vida política nenhum partido actua sozinho; um resultado eleitoral é indissociável da intervenção própria do partido e da dos outros, do ambiente mediático e do ambiente social. A forma como a sociedade portuguesa tem evoluído nas últimas décadas, com a desindustrialização, as alterações na estrutura fundiária com a diminuição drástica do número de trabalhadores rurais e operários industriais - obviamente que se reflecte no PCP e na sua influência eleitoral.
Claro que o partido procura as melhores formas de intervenção e de escolha dos representantes. A bancada do PCP chegou a ser a mais jovem do Parlamento. Creio que o partido tem procurado adaptar a sua intervenção pública.
O que tem falhado?
Têm falhado as circunstâncias em que temos que actuar, que são difíceis. Creio que os resultados eleitorais negativos podem ser assacados a erros próprios, mas não exclusivamente. Importa sempre fazer uma análise profunda sobre o que podíamos ter feito melhor.
É possível concluir que de 2015 até 2019 não soubemos valorizar devidamente os progressos que foram conseguidos por iniciativa e insistência do PCP. O PS apropriou-se deles e nós provavelmente não conseguimos encontrar a melhor forma de fazer chegar isso aos portugueses.
Em 2016 admitia ver o PCP num Governo do PS “que não decepcionasse as expectativas do PCP". Com tudo o que se passou nestas duas legislaturas e o processo orçamental, ainda confia no PS para esse cenário em 2026?
Não é uma questão de estados de alma, de confiar ou não. Não é bom que a política entre em futurologia. O que podemos dizer é que o PCP que continua aberto à convergência no que for positivo mesmo no quadro da maioria absoluta do PS. Ou seja o PCP não vai determinar o seu sentido de voto sobre as propostas do governo com uma obstinação de 'eles têm maioria absoluta por isso vamos votar contra tudo o que eles proponham’. Esperando nós que em futuras legislaturas o PCP possa reforçar a sua votação e representação parlamentar, não haja maioria absoluta e que as condições de convergência possam ser outras.
Sobre a liderança parlamentar: o actual não foi eleito. Como é que o partido vai solucionar essa questão? Podemos ver uma mulher à frente da bancada do PCP?
O partido vai solucionar essa questão indicando um novo líder parlamentar. Pode perfeitamente ser uma mulher, não haverá nenhuma objecção, bem pelo contrário. As probabilidades são 50/50 porque o grupo parlamentar é absolutamente paritário. Há três deputadas: Alma Rivera, Diana Ferreira e Paula Santos.
Saindo do Parlamento, o que vai fazer? Vai dedicar-se ao partido? A sua área de formação é o Direito.
Vamos ver. A ligação ao partido manter-se-á: sou membro do comité central, continuarei a desempenhar funções partidárias seguramente, com participação muito activa. Sou professor universitário e jurista; tenho alguma ligação à universidade embora reduzida tendo em conta a ocupação das funções de deputado. Não excluo que possa ter maior envolvimento no ensino e investigação.
Está na AR desde 1989. O que gostava de ter feito e nunca conseguiu?
Gostava muito que tivéssemos alterado num sentido positivo a legislação laboral. Tenho pena que não tenham sido aprovadas todas as propostas. Portugal vive um problema muito grave de falta de direitos dos trabalhadores, uma economia assente em salários baixos e na precariedade. É uma emergência social que isso seja alterado.