19 dez, 2024 • Ana Catarina André e Ana Dias Cordeiro (Público)
Maria Lúcia Amaral é provedora de Justiça desde 2018. Nessa qualidade, recebeu em 2023, como em anos anteriores, mais de 10 mil queixas de cidadãos sobre a actuação do Estado ou a ausência de respostas devidas por parte da administração pública. Foi vice-presidente do Tribunal Constitucional e, além de professora catedrática é, por inerência do cargo que ocupa até 2025, conselheira de Estado. Nesta entrevista à Renascença e ao jornal Público aponta falhas à rede de cuidados paliativos e à fiscalização dos lares para a terceira idade.
Requereu ao Tribunal Constitucional ( TC) a declaração de inconstitucionalidade da lei da morte medicamente assistida, da eutanásia, depois de ter recebido queixas que considerou fundamentadas. Para si é óbvio que a lei está ferida de inconstitucionalidade?
Estas questões nunca são óbvias, são bastante complexas. O que me cabe é decidir se há fundamento bastante para pedir juízo ao Tribunal Constitucional. Se as dúvidas que temos são ou não são relevantes e merecem ser resolvidas por quem decide, quem tem competência, que é o Tribunal Constitucional.
Neste caso, essas dúvidas dizem respeito à lei propriamente dita ou ao facto de em Portugal vir a existir uma lei da morte medicamente assistida?
As duas coisas são incindíveis. Recebi várias queixas assim que a lei foi promulgada. Não me deixei guiar pelas queixas, no sentido em que, assim que comecei a estudar o assunto, vi que o problema real que eu via como merecedor de uma nova intervenção do TC era outro que não aquele que as queixas identificavam. E a questão é esta: a decisão que é tomada tem um grande pressuposto que é a autonomia da vontade de quem pede auxílio para morrer. A vontade dessa pessoa tem, ao longo do procedimento, de ser uma vontade livre e esclarecida. A grande dúvida, e essa só pode ser resolvida pelo TC, é se o Estado português tem condições para garantir, num procedimento destes, que a vontade seja livre, esclarecida e autodeterminada. Esse é o grande debate e é o debate que ainda não houve. O Estado português tem condições para isso? Esta não é uma lei como qualquer outra. Nós estamos em condições de garantir a autodeterminação das pessoas nestes casos?
O problema não é, para
si, existir esta lei em Portugal? Ou refere-se antes à incipiente rede de
cuidados paliativos?
Esse é o problema específico do nosso país. Esta não é uma dúvida metafísica e
abstracta, e que não tem rigorosamente nada que ver com convicções filosófico-religiosas transcendentais profundas,
e isso é bom que se esclareça. As pessoas têm todo o direito a tê-las. Num
Estado constitucionalmente neutro como é o nosso não pode ser isso que está em
causa. A discussão que temos como país deve ser outra. A nossa rede de cuidados
paliativos é das mais frágeis, se não a mais frágil da União Europeia, de
acordo com os números, os estudos, os relatórios.
Numa outra frente, a
maioria dos inquéritos a crimes contra utentes em lares de idosos é arquivada.
É sinal de que o Estado está a falhar?
Pois, possivelmente será. Talvez o Estado não tenha a capacidade para ter um
controlo efectivo de quanto existe nos chamados lares de terceira idade. Do que
existe, o quanto existe, como existe. É uma tarefa ingente que cabe ao Estado
fazer, cabe às suas autoridades fiscalizadoras, nomeadamente a Segurança
Social, e nós não garantimos que temos meios e que essa tarefa de fiscalização
esteja a ser efectivamente cumprida. Esse é um problema sério.
Parece-lhe justa a
proposta do PSD e CDS de restringir o acesso ao Serviço Nacional de Saúde dos
estrangeiros?
Nós temos, de um lado, a Constituição, que diz que os estrangeiros que se
encontrem ou residam em Portugal gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos
mesmos deveres que os cidadãos portugueses. Em consonância com isto, nós temos
uma lei de bases que, neste momento, diz o seguinte: os estrangeiros legalmente
residentes em Portugal têm os mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos
deveres, visto que têm um estatuto jurídico claro e sobre eles impendem os
mesmos deveres que impendem sobre os cidadãos portugueses. Em relação a eles
não há problema. Eles contribuem, tal como os portugueses, para as nossas
estruturas comuns. O problema põe-se, portanto, em relação àqueles que não
contribuem porque não têm autorização de residência.
Encontram-se em Portugal, mas não residem legalmente em Portugal. E aí é que se coloca o problema. Neste momento esse problema é resolvido através do acesso mas sem a gratuitidade. Isso é identificado através de um despacho: as pessoas que não tenham residência legal em Portugal e, portanto, não estejam sujeitas aos mesmos deveres que os cidadãos portugueses porque não têm estatuto jurídico, podem ir ao SNS, mas têm de pagar.
Pode haver aqui situações intermédias, em que migrantes não têm a sua situação regularizada, não porque não procurem tê-la mas porque houve, por exemplo, atrasos na atribuição dos documentos.
E isso porque não é imputável às próprias pessoas, é imputável ao Estado.
Nestes casos, não existe
uma diferença entre estas pessoas e pessoas que vêm especificamente a Portugal
para se tratar?
Claro que sim que tem de haver uma diferença. Os critérios de justiça obrigam
desde logo a que haja uma grande divisão. Entre aquelas pessoas que não vieram
para ficar, não requereram a sua regularização e que, oportunisticamente,
vieram para fruir de coisas para as quais não contribuem. Nas excepções, estas
coisas hão-de estar contempladas.
Outra coisa completamente diferente são as pessoas que se sabe que vieram para trabalhar, que se sabe que contribuirão para a nossa vida comum, nos mesmos termos, como diz a Constituição, e estarão sujeitos aos mesmos deveres que os cidadãos portugueses e que só não estão regularizadas por uma acção imputável ao Estado português.
Portanto, não acompanha
os argumentos do PS de que pode haver problemas de constitucionalidade nesta
medida?
Bem, não sei, depende. Se a proposta, que eu não conheço, for de tal ordem que
diga: há uma lei para o Serviço Nacional de Saúde só para os portugueses e
outra completamente diferente para todos os estrangeiros. Se chegar a esse
ponto, pois claramente é contrária ao princípio da universalidade que o artº 15, do nº 1 da Constituição consagra. Isso
neste momento a Constituição proíbe. Outra coisa é definir as excepções que
podem ser admitidas ao princípio da não-gratuitidade para
aqueles que não têm a residência legal em Portugal. São duas coisas
completamente diferentes.
No Parlamento, em
Outubro, disse que 40% das queixas que recebia são relativas a cidadãos
estrangeiros. E referiu também, e disse-o assim, que a administração pública
não trata destes cidadãos estrangeiros. Não trata bem porque não trata deles.
Refere-se a quê exactamente?
Isso é uma pergunta bastante vasta e bastante complexa e também muito
importante. Quando eu digo que a nossa administração não tratava, estou a
referir-me às famosas pendências para a regularização de situações de entrada
em território português que estão ainda por tratar. E das pessoas que estão num
limbo, visto que entraram em território português, muitas vezes já têm um
contrato de trabalho, já estão a trabalhar, mas ainda não têm autorização de
residência e, portanto, não têm ainda um reconhecimento por parte do Estado
português da validade e da legalidade da sua permanência em território
português.
Isto aconteceu porque houve uma confluência de factores extraordinariamente prejudiciais para toda a gente, que foi um aumento imenso do fluxo de imigrantes para o território português. Muitos deles, oriundos de partes do mundo que não costumavam vir para cá trabalhar. Estou a falar, por exemplo, daqueles que vêm do subcontinente indiano.
De repente houve, sobretudo depois da pandemia, um fluxo imenso de migração. Esse fluxo imenso fez-se no quadro de um sistema legal que dizia que as pessoas entravam primeiro e se regularizavam depois através das manifestações de interesse. E, ao mesmo tempo, a polícia e a administração, que há um tempo tratava disto tudo, que era o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), foi extinto e as suas competências foram divididas por múltiplos outros órgãos. Tudo isto junto causou uma situação de enorme dificuldade para as pessoas que entraram, de enorme dificuldade para os serviços do Estado, que as não tratam bem porque não podem. Era isto que eu queria dizer.
O fim da manifestação de
interesse era uma necessidade?
Não tenho bem a certeza disso, não me pus na pele de quem tem de decidir
politicamente. É uma decisão política, fundamentalmente. O que eu tenho a
certeza é de que a situação anterior era insustentável. A situação anterior
implicou a confluência de três factores que, juntos, geraram um caos. O modelo
de manifestação de interesse significa que as pessoas entram com um visto de
turista, depois tratam da regularização da sua situação no território nacional,
com a manifestação de interesse. Foi isso que, com todos os factores acumulados
de risco, levou a uma situação ingerível.
E nesse sentido, era mau
para os próprios migrantes?
Péssimo. Era-lhes garantido uma entrada ampla em território português e,
depois, uma situação de incapacidade de resposta das autoridades portuguesas.
Isto não é justo.
O Governo anunciou que
está a negociar com as confederações patronais um regime que permita obter
vistos rápidos se os patrões garantirem casa aos imigrantes. Concorda? Por
outro lado, considera isto susceptível de aumentar o fenómeno designado por
‘camas quentes’, no qual vários imigrantes utilizam a mesma cama durante o
mesmo dia por não terem outra solução de uma habitação mais digna?
Eu conheço essa designação e tudo o que ela implica. Pois, nós não sabemos, é
também um debate que está muito no seu início. O que sabemos é que, se essa
solução for adoptada dentro do quadro aplicável, terá de haver uma grande
capacidade das autoridades do Estado português para um controlo efectivo dessas
situações. Não queremos que haja pessoas condicionadas a permanecerem, por
exemplo, ao trabalho de uma única empresa por razões de sobrevivência e de
pressupostos mínimos de existência. Não pode ser. É fundamental que tudo isso
corresponda a uma verdadeira integração e que o Estado esteja atento para
impedir que essas situações se transformem em situações terríveis de
exploração.