16 jul, 2020
Nunca foi tão evidente como agora que ninguém se salva sozinho. Nem países nem pessoas. O vírus que percorre o planeta não se cansa de o demonstrar. Mas nem todos querem compreender. Ainda há céticos, no mundo e na Europa.
Assustado pelas sondagens e pelo desastre americano no combate à pandemia, Donald Trump ameaçou esgotar o stock mundial de um medicamento anti-Covid. É um exemplo - e um mau exemplo - de quem acha que um país, só por si, dá conta deste recado.
Na Europa, aguardam-se novidades sobre o pacote económico dos próximos anos. Já se sabe que uma mão cheia de países presume intocável o seu bem-estar e contempla o próprio destino (sobretudo económico) como se fosse facilmente separável de outros europeus (sobretudo dos mais pobres).
Trata-se de uma presunção anacrónica, numa altura em que as dependências internacionais se multiplicam: na saúde, na economia e na política. Mais do que uma visão decadente é uma triste ilusão, dos chamados países ‘frugais’. E grandes ilusões podem acabar em grandes depressões. É essencial não chegarmos aí. Sem uma visão agregadora de longo prazo, a Europa tornar-se-á prisioneira da armadilha dos egoísmos e dos medos. E os grandes blocos aproveitarão tudo aquilo que a Europa desperdiçar.
Mas internamente também se detetam vestígios do mesmo mal. Pessoas e grupos que pedem aos outros o cumprimento de regras que só aplicam quando lhes convém.
Ao longo da pandemia, o Estado impôs - e em geral, bem - um conjunto de restrições ao modo de viver e trabalhar, para combater o vírus. A sociedade assumiu a imposição como boa. Percebeu que tais regras eram do interesse geral. E pô-las em prática.
Mas o confinamento revelou que as regras nem sempre eram para todos. Alguns poderiam fazer o que a outros se vedava. Era o caso da proibição profilática de ajuntamentos. Veio primeiro o 25 de Abril, em que alguns, horrorizados, chegaram a afirmar que não se iriam ‘mascarar’ para as respetivas celebrações. Seguiu-se o 1º de Maio, permitindo-se manifestação na rua, enquanto o país se confinava em casa. Depois, novas exceções, para acolher comícios ou manifestações como a do Chega e a do movimento anti-racista.
Para quem duvidasse, ficámos a saber que nos caso da atividade política nos podemos juntar. Talvez em nome da seletividade do vírus. Ao reconhecer a importância de tais eventos, presume-se que este inimigo público número um abdicará de qualquer ímpeto de contágio.
Deve ser também por isso que estando todos os festivais de música cancelados, a Festa do Avante obteve luz verde para avançar. Por se tratar de uma manifestação política pode realizar-se, mesmo que pelo meio se realizem uns quantos concertos que muito justamente costumam juntar milhares de pessoas. Os outros não podem: é proibido. A Festa do Avante pode: é permitido.
Mas infelizmente, há mais e há pior. É o caso dos transportes públicos. Algumas imagens nos transportes, designadamente nos comboios das grandes cidades, não mentem. E mostram como milhares de portugueses com menos recursos se vêm obrigados a viajar diariamente em condições que (antes e depois da pandemia) nos devem fazer corar de vergonha – a todos, incluindo aos responsáveis. Mas logo nos sossegaram: não há grande perigo. O vírus viaja por todo o lado, exceto nos transportes públicos portugueses. Percebe-se: é um vírus inteligente.
De repente, todos os ajuntamentos (com a tal exceção dos eventos de natureza política e dos concertos que ali se realizem) são maus, mas nos transportes públicos portugueses são capazes de ser bons, talvez mesmo inócuos, em todo o caso, seguramente à prova de contágio.
Por muito menos se interditam – e bem – ajuntamentos de toda a ordem, incluindo as festas que muitos jovens teimam - e mal - em realizar. Mas nos transportes, não é nada demais. Até o Presidente da República, a quem muito devemos pelo modo como geriu a fase inicial da pandemia, acabou por vir defender o indefensável: nos comboios ninguém se tem contagiado.
Claro que os transportes são um osso duro de roer. É fácil reconhecer. Iludir a questão é o que não se pode fazer. Nesta conjuntura, a oferta tem que aumentar e, simultaneamente, mobilizar agentes económicos (incluindo o Estado) para a indispensabilidade de desfasar horários de pessoas e serviços, descongestionando o tráfego e aliviando as chamadas ‘horas de ponta’. Trata-se de uma gestão difícil, mas urgente.
Esta pandemia é uma prova dura para todos, exige sangue frio e racionalidade, mesmo quando os meses se sucedem e o cansaço se acumula. Mas é agora que se precisa de mais liderança e de envolvimento de toda a sociedade. Para além da questão sanitária, emerge a questão económica e os impactos sociais que a pandemia tem provocado e continuará a provocar.
Não basta o Presidente e não basta o primeiro-ministro. Não basta o Governo e não basta a oposição. Não basta o Estado e não basta a sociedade civil. Não basta o investimento público e não bastam as empresas. Não bastam as pessoas e não bastam os dirigentes. Não basta o dinheiro e não bastam as ideias.
Precisamos de tudo e de todos, articulados numa estratégia e num desígnio que reúna o melhor que Portugal tem para dar. Com visão clara e decisões coerentes, racionais e explicáveis.
É mais fácil escrever do que fazer. Mas seria imperdoável não tentar.