26 out, 2021
A estabilidade política dos últimos seis anos deveu-se à chamada geringonça.
Mais formal nos primeiros quatro anos e mais informal nos últimos dois, a geringonça funcionou. Mais, nunca falhou. Especializou-se em contornar os casos bicudos, que, se ocorressem com uma maioria de direita, seriam vistos como crimes de lesa-Pátria.
Os casos (foram muitos e alguns feios) não chegaram para derrubar os governos de António Costa.
Os trágicos incêndios de Pedrógão e o modo como foram geridos não seriam perdoados a um Governo mais à direita.
O peculiar assalto a Tancos teria fustigado a incompetência funcional do Governo, envolvido num roubo ridículo numa espécie de ‘remake’ da ‘guerra do Solnado’.
O acidente de um ministro, cujo carro oficial ceifasse a vida de um trabalhador numa auto-estrada, teria outro escrutínio e outras consequências.
As cativações de Mário Centeno se fossem obra de Vítor Gaspar seriam vistas como insuportáveis.
Se os planos da bazuca fossem construídos sem uma sólida articulação com o mundo económico (empresários, trabalhadores, instituições) cairiam o Carmo e a Trindade.
Se alguns parceiros sociais (que não os do patronato) se vissem forçados a abandonar a Concertação Social, depois de terem sido objetivamente ignorados, para não dizer completamente enganados pelo Governo, que dramáticas ilações não se retirariam?
E se um Chefe de Estado-Maior da Armada fosse substituído na praça pública pelo Governo e à revelia do Presidente da República, o que não sucederia depois ao ministro da Defesa?
Tudo isto e muito mais teria levado outros governos ao tapete. Indignada, a esquerda não perdoaria. Mas nada disto chegou para derrubar o governo do PS. Nem sequer os orçamentos. Mais milhão menos milhão, as coisas foram-se compondo.
É verdade que António Costa, honra lhe seja feita, confirmou-se como um político hábil e experiente. Foi primeiro-ministro sem ganhar as eleições, porque deu a cheirar o poder, ao Bloco e ao PCP.
Incluiu-os onde há muito não estavam. Seduziu-os com inegável mestria. E eles deixaram-se seduzir, até perceberem que o apoio (quase) permanente ao PS lhes roubava a vocação de (quase) permanente oposição.
Para quê planear grandiosas manifestações contra o Governo, como sempre haviam feito, se o dito Governo era amparado e suportado pelos próprios eventuais organizadores de tais iniciativas?
Os comunistas sempre foram dados à "rua": juntar massas e mobilizá-las com o objetivo de derrubar quem governasse em maioria no palácio de São Bento. Mas agora, como mobilizar a ‘rua’, se António Costa os tinha instalado no palácio do poder?
E coisa semelhante se passou com o Bloco de Esquerda. O habitual discurso duro e triunfalista do Bloco empalideceu à sombra do Governo. Perdeu sex appeal. E foi em parte ultrapassado pelo discurso demagógico do Chega que até rendeu alguns votos de eleitores do PC no partido de André Ventura.
As urnas confirmaram o que as análises já previam. O negócio da geringonça podia sair caro ao PC e ao Bloco. De há seis anos para cá, tinham deixado escapar das mãos a inefável vocação de serem contra tudo e quase todos, à moda da anedota anarquista: si hay gobierno, soy contra!
Se os resultados dos respetivos candidatos presidenciais já tinham deixado um gosto amargo ao PC e ao Bloco, o fracasso das autárquicas fez soar as sirenes de alarme.
Pior, as mesmas sirenes tocaram também no largo do Rato. A perda de Lisboa foi um golpe inesperado para o PS. Ninguém o viu chegar. Porventura nem os vencedores.
Autárquicas não são legislativas, mas acabam por ser um termómetro. E o termómetro revelou uma debilidade a que António Costa não estava habituado.
A fragilidade não o apanhou totalmente desprevenido. O modo como o primeiro-ministro se empenhou na campanha eleitoral deu-nos a justa medida do seu receio. Costa foi ‘a todas’, prometeu quase tudo e bateu-se até ao fim. Ganhou as eleições, mas perdeu o que mais queria: Lisboa e outras capitais de distrito.
Ferido como nunca nestes últimos seis anos, o PS deve ter feito contas à vida, sem deixar de olhar para o que se prepara à sua direita.
De repente, no PSD, Rui Rio é posto à prova por um candidato que ameaça ser um osso mais duro de roer.
Paulo Rangel só agora chegou à corrida, mas de uma penada já explicou ao que vem, com uma clareza de que Rui Rio ainda não foi capaz: forte ligação ao CDS, diálogo com a Iniciativa Liberal, e contenção do Chega, chegando a apresentar o PS como uma espécie de melhor amigo do Chega. Quanto maior fosse a ameaça de crescimento do Chega, mais provável seria a concentração de votos à esquerda no PS.
Simultaneamente, no CDS, a liderança de Chicão vai de novo a votos, mas agora contra Nuno Melo, até hoje um candidato adiado.
Claro que ninguém sabe com segurança o que se vai passar no PSD e no CDS. Vão os líderes manter-se? Só um deles muda?
Paulo Rangel e Nuno Melo serão os novos rostos do centro e da direita? E se formarem um ‘ticket’ vencedor?
Vale a pena correr o risco de lhes dar tempo para formarem um bloco coerente e uma alternativa forte?
E se no fim da atual legislatura, o espaço do centro e da direita surgisse reorganizado e mais sólido, porventura com novos dirigentes, outras ideias e um novo discurso?
Não seria preferível precipitar eleições sem deixar espaço de afirmação a eventuais novas lideranças de PSD e CDS?
As incógnitas que as direitas lhes podem reservar foram certamente decisivas nos cálculos orçamentais das esquerdas.
Se houver crise política a culpa não é seguramente do orçamento, mas fruto do medo de uma nova alternativa de direita. Tal como nos últimos seis anos, os temas orçamentais resolver-se-iam se houvesse vontade política dos três braços mais fortes da geringonça.
De resto, após quase dois anos de pandemia parecia impensável uma crise política que interrompesse a legislatura, numa altura em que é urgente começar a gerir os dinheiros da ‘bazuca’ e dos fundos estruturais.
Mas os resultados das autárquicas e a imprevisibilidade de um reagrupamento da direita deixaram a esquerda insegura. E como o Presidente da República já explicou que sem orçamento haverá dissolução do parlamento, quanto mais cedo a crise se precipitar, menos espaço haverá para eventuais novas lideranças se afirmarem.
Havendo uma rápida dissolução do parlamento, as eleições legislativas podem realizar-se num prazo mínimo de cinquenta e cinco dias.
Se o Presidente da República quiser usar da máxima rapidez, acabará por sufocar os processos eleitorais em curso na oposição.
PSD e CDS ficariam ‘ensanduíchados’ pela precipitação de uma crise política que resultasse em eleições no curtíssimo prazo.
A realização das eleições internas, os prazos processuais, as tomadas de posse, a elaboração de listas de candidatos, o estabelecimento de compromissos ou de eventuais coligações, tudo leva, habitualmente, mais tempo do que os meros 55 dias que a lei determina ser a antecedência mínima, para a realização de eleições após uma dissolução parlamentar.
Mas tudo depende de Marcelo Rebelo de Sousa. Se o Presidente quiser, poderá alargar o prazo, permitindo aos militantes do CDS e do PSD resolverem previamente as questões da liderança.
De outro modo, a crise orçamental funcionará como uma pressão providencial para que ambos os partidos mantenham os respetivos líderes, o que talvez fosse, afinal, a melhor notícia para as esquerdas. Já sabem o que esperar dos atuais líderes do PSD e do CDS, de Paulo Rangel e Nuno Melo nem tanto.
Se o orçamento chumbar e a crise se confirmar, é porque houve consenso na geringonça, não importa se implícito ou expresso.
A coreografia está montada, para que PS, PCP e Bloco de Esquerda se apresentem perante as respetivas bases, com o seu melhor traje eleitoral.
O PS surgirá como vítima, garantindo que cedeu em tudo e mais alguma coisa (o que até é verdade) para evitar eleições antecipadas.
PCP e Bloco de Esquerda desempenharão o papel dos heróis de uma esquerda que não podia continuar a ser muleta das insuportáveis ‘políticas de direita’ de António Costa.
Pelo caminho, fazem o essencial: dão um golpe (constitucional) na direita, impedindo que os atuais líderes do PSD e do CDS saiam reforçados ou sejam substituídos nos respetivos processos eleitorais.
A geringonça chegou ao poder com uma espécie de golpe de Estado que a Constituição permite. E, agora, a mesma geringonça, dá um novo golpe - também constitucionalmente admissível. Através da crise orçamental não visam mais do que tentar conservar o poder, prevenindo riscos maiores resultantes de uma eventual renovação à direita.
Se houve estabilidade nos últimos seis anos, muito se deve à geringonça. E se agora a crise chegar ,é também da sua exclusiva responsabilidade - por excesso de calculismo e défice de sentido de Estado.
Politicamente é (mais) um golpe de mestre. A decisão está nas mãos do Presidente.