04 mar, 2022
A emergência da China como grande potência diplomática internacional é, provavelmente, uma das poucas saídas para a invasão militar russa da Ucrânia.
O estatuto económico da China é conhecido e o seu poderio militar tido em conta. Porém, falta à China capacidade e estatuto para a intervenção diplomática nas grandes questões internacionais.
Sem mudanças políticas internas no Kremlin e sem o recurso a uma guerra nuclear - que ninguém em seu perfeito juízo pode desejar - resta a mesa das negociações.
Sucede que um diálogo direto entre Rússia e Ucrânia parece condenado ao fracasso. A Rússia não quer perder a face. E a Ucrânia não pretende abdicar da sua independência.
Nesta mesa de negociações faltam parceiros que possam forçar um acordo em que nenhuma das partes verá consagrados todos os seus desejos.
O bloco ocidental, no qual avulta uma inesperada, mas indispensável unidade da Europa, bloqueou economicamente a Rússia. E atuou com uma rapidez que surpreendeu simultaneamente Moscovo e os próprios europeus.
Mas não há bela sem senão: o bloqueio económico europeu e americano, essencial para defender a Ucrânia, fechou quase todas as portas para negociações de paz patrocinadas por uma potência ocidental. Sobra a China e pouco mais.
Pequim começou por criticar a Nato e os americanos. Contudo, na ONU, os chineses ainda não votaram ao lado da Rússia, abstendo-se no Conselho de Segurança e na votação da Assembleia-geral que condenou a invasão militar russa.
Utilizada inicialmente, os chineses acabaram por deixar cair a expressão predileta de Putin - ‘operação militar especial’. E admitem que estamos na presença de um ‘conflito’. Parece pouco, mas é imenso, num território diplomático, também ele minado e tortuoso.
Com a situação de Taiwan (e não só) na sombra, a China é uma das partes mais interessadas num conflito em que não participa diretamente. E sobre o conflito da Ucrânia, Pequim já explicou a sua doutrina, baseada em dois pontos.
Os chineses têm sublinhado a necessidade de respeitar a soberania e a independência dos países (no que parece ser uma mão estendida à Ucrânia), mas também dizem compreender as preocupações com tudo aquilo que afeta e condiciona a segurança de uma potência como a Rússia.
Por um lado, defendem que a segurança de um país não pode ser conseguida, pondo em causa a segurança de outras nações, neste caso, a Ucrânia. E por outro, sustentam que a segurança regional não pode ser alcançada através da expansão de blocos militares, leia-se, da NATO.
Os dois argumentos usados hoje pela China sobre a guerra da Ucrânia poderão ser usados amanhã, na questão de Taiwan ou Formosa (ilha descoberta pelos portugueses no século XVI).
Depois de recuperarem Hong-Kong e Macau, resta a reunificação com Taiwan, restaurando a soberania chinesa sobre uma região que se separou de Pequim há mais de 70 anos, na sequência da revolução comunista.
Dito de outra forma: recuperar Taiwan significa para os chineses uma questão de soberania e de independência, reivindicação que também reconhecem aos ucranianos, quando defendem a sua integridade territorial.
Mas ao sublinharem o argumento de que à Rússia assistem legítimas preocupações de segurança, a China associa-se a idênticas preocupações, até por considerar que o atual estatuto de Taiwan (com o tradicional apoio dos Estados Unidos) é uma ameaça à sua própria segurança.
Deste modo, a China tem utilizado para a questão da Ucrânia dois argumentos que lhe interessam particularmente para o problema de Taiwan.
Se a Rússia e o ocidente não se entenderem, como é provável, Pequim surge como a melhor chance para a paz. Com isso, consolida o seu argumentário para a sonhada reunificação chinesa e ao mesmo tempo assume um estatuto de superpotência (também) diplomática, essencial à resolução dos grandes conflitos.
Se patrocinar a paz na Europa, a China não deixará de marcar pontos em todos os tabuleiros internacionais. E restaurará, já agora, uma imagem que saiu beliscada nos últimos dois anos, por circunstâncias ligadas à ocorrência da pandemia.