16 mar, 2022
Para o próximo dia 25 de março, o Papa Francisco que no início da guerra saiu do Vaticano para se reunir com o embaixador russo junto da Santa Sé, anunciou a consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria. A consagração vai decorrer no Vaticano e em Fátima, onde estará um enviado papal.
O gesto evoca a memória de São João Paulo II e a intervenção da Irmã Lúcia neste processo que culminou com a consagração da Rússia e do mundo inteiro, em união espiritual com todos os bispos, em 25 de março de 1984.
Na altura, seria impensável que fosse necessário ocorrer algo semelhante trinta e oito anos depois.
Na verdade, ninguém estava preparado para a brutalidade da guerra na Ucrânia, provocada pela invasão da Rússia. Crianças mortas (para cima de cem), milhões de pessoas em fuga, vidas destruídas, cidades arrasadas, um imenso território a ferro e fogo.
Julgava-se que coisas destas não se veriam tão depressa na europa. Tão depressa, porque a II guerra mundial terminou há menos de 80 anos. E 80 anos são um ‘quase nada’ para a História.
Julgava-se também que este grau de destruição - desumano e sem sentido - era (im)próprio de regiões longínquas, a uma razoável distância (de segurança) das sociedades ditas civilizadas.
No conforto das nossas vidas, perante tais conflitos longínquos, condenava-se, sancionava-se, mas não se sofria exatamente o mesmo que agora se experimenta com a invasão russa da Ucrânia.
Inconscientemente, o valor da vida parece aumentar, quando o drama se aproxima da nossa porta. E, no entanto, toda a vida humana tem o mesmo valor seja em Mariupol, em Kiev, na Eritreia, em Cabo Delgado, na Serra Leoa, na Síria, no Iraque, no Afeganistão, em Paris, na Sibéria, em Nova York ou em Lisboa.
Hoje é talvez mais claro que ninguém tem o monopólio da barbárie. E é também evidente que não pode haver hierarquias na dignidade da vida humana.
Toda a vida tem dignidade e o desperdício de uma só, implica a mesma gravidade, independentemente das origens, ideias ou confissões religiosas. Mesmo quando os media não acompanham, o mal está lá. Longe da vista ou dos ouvidos não pode significar longe do coração e dos sentidos.
Esta guerra é por isso uma oportunidade para repensar prioridades e valorizar o mais importante para as pessoas e para as sociedades.
Haverá sempre líderes fundamentalistas e fanáticos, mas é preciso resistir-lhes. Não apenas militarmente, mas com os valores mais fundos da consciência humana.
Se hoje não se resistir a Putin, também com o arsenal da consciência e dos valores humanos, amanhã o mundo será um lugar pior.
Claro que a liberdade tem um preço. Nos próximos tempos, haverá provavelmente menos conforto, mais dúvidas, novas inquietações. É sempre assim quando se defende e protege algo tão precioso, quanto a vida humana em liberdade. Será necessário, e justo, proteger os mais fracos, mas é decisivo que os sacrifícios inerentes ao que aí vem não desmotivem ninguém.
O preço da liberdade é elevado, mas o nosso será incomparavelmente inferior àquele que os ucranianos estão a pagar com a própria vida, enfrentando com generosidade a rudeza da invasão.
Se recusarmos hoje os desafios em cima da mesa, o esforço ucraniano liderado por Zelensky, terá sido em vão. E ficaria patente que as sociedades do bem-estar, que todos prezamos, teriam anestesiado não só a dor, mas toda a consciência e sensibilidade.
Claro que a paz se reconstrói também com cedências recíprocas. E os dois lados sabem disso. Porém, ao mesmo tempo que vemos e ouvimos a guerra ‘em direto’, sabemos pouco sobre o que se passa à mesa das negociações.
Entre o que se diz sobre as conversações e o que realmente se passa vai, como sempre, uma considerável distância.
Para além das rondas de negociações anunciadas, há muitas outras conversas, com outros mediadores e com diferentes abordagens. Mas o resultado final não pode colocar em causa o mais importante: segurança, liberdade e autodeterminação dos ucranianos. E onde se lê ucranianos, podia ler-se europeus.
Se depois de fisicamente devastada, a Ucrânia fosse política e humanamente derrotada, todas as sociedades que vivem ou aspiram a viver em liberdade teriam sido vergadas, por ação de terceiros ou por abdicação própria.
Cerca de 1 milhão e meio de crianças já fugiu da Ucrânia. Uma delas, é um rapaz com 11 anos de idade. A Mãe não pôde fugir, porque a avó do pequeno Hassan não estava em condições de o fazer. Fugiu Hassan. Encorajado pela Mãe, percorreu mais de mil quilómetros, até à Eslováquia, a pé ou de comboio.
Quase sempre sozinho chegou à fronteira, apenas com o passaporte, um saco de plástico e nas costas da mão o telefone de familiares a residir na Eslováquia. Ao chegar Hassan confessou: Foi a esperança que me guiou.
Por maiores que sejam as dificuldades dos próximos tempos ninguém pode ter menos esperança do que esta criança.
Sacrificar a Ucrânia seria sacrificar todos os meninos como Hassan, roubando-lhes a esperança e também o futuro: o dele e o nosso.