09 dez, 2020
O contra factual histórico é um exercício sedutor. Francisco Sá Carneiro morreu tragicamente há 40 anos. Se, naquela noite, tivesse viajado na TAP para o Porto, e não no Cessna que se despenhou em Camarate, o resultado da eleição presidencial que reconduziu Eanes não teria sido diferente, mas muita coisa poderia tê-lo sido. No próprio dia 4 de dezembro, ele anunciara ao seu círculo mais próximo a intenção de refundar a vida política portuguesa, talvez transmutando a AD num novo partido, com parte do PSD, o CDS e uns quantos ilustres do campo não-socialista. Teria voltado a ser primeiro-ministro, e a história talvez hoje não recordasse o insucesso de Balsemão ou o sucesso, sem rival, de Cavaco. E se a política partidária não o tivesse deixado fazer obra, poderia ter sido ele, e não Freitas, a disputar as presidenciais de 1986 contra Soares. Sobretudo, Soares não teria entrado para a história como o único patriarca da democracia e do Portugal europeu, porque Sá Carneiro viveria o suficiente para cimentar idênticos créditos na memória dos portugueses. Ao morrer, aos 46 anos, depois de uma década de meteórica carreira política, Sá Carneiro não deixou só órfãos os que depois foram a direita portuguesa, de Freitas a Portas e de Balsemão a Passos; deixou, na verdade, sem um incumbente à altura o espaço político que o inchamento da esquerda definiu como sendo a “direita” portuguesa.
Sá Carneiro só chegou à política com 35 anos, seduzido, em 1969, pela esperança de fazer parte da transição para uma democracia pluralista, livre e ocidental. Mas logo se desgostou com os limites do marcelismo, de uma modernização sem liberdade. Foi a partir do seu catolicismo progressista que concebeu a democracia de direitos, liberdades e deveres como caminho para uma realização personalista, inteira, autónoma, da pessoa e da dignidade humanas.
Era um liberal, num país que se desabituara a saber o que isso significava; e um democrata, que sempre confiou nos portugueses e na sua maturidade e capacidade para serem o verdadeiro nervo de uma social-democracia moderna. Antes de 1974, esteve à esquerda do marcelismo; depois de 1974, depressa se descobriu à direita do domínio comunista (no PREC) ou soarista (no pós-PREC).
Mas só foi “de direita” – rótulo que nunca reivindicou – porque foi dos poucos que lutou, nos anos pós-1976, por uma alternativa ideológica clara, por um país diferente do tutelado pelos militares do Conselho da Revolução e constitucionalmente destinado a caminhar para uma “sociedade sem classes”. Os que o rotularam de “fascista” não gostavam dele pela mesma razão por que Marcelo Caetano o julgara demasiado “radical”: tanto as esquerdas revolucionárias como, antes do 25 de abril, a velha direita paternalista não acreditavam que os portugueses fossem capazes, ou tivessem realmente o direito, de disporem de si mesmos e de participarem, sem serem pastoreados, na construção do seu futuro. No país de Eanes, de Soares, ainda de Cunhal, por entre as suas maleitas físicas, os desencontros com o “seu” PSD e a romanesca vida amorosa com Snu Abecassis, Sá Carneiro pareceu muitas vezes um homem só. Em 1979, finalmente, ergueu a AD como parte vertebrante de uma bipolarização que chamava os portugueses à escolha entre um projeto ainda revolucionário e estatista e um projeto de liberdade com ordem, de progresso com segurança, de desenvolvimento com justiça e de democracia civilista com Europa: os portugueses que escolhessem; e os portugueses escolheram(-no), dando-lhe a maioria absoluta em dezembro de 1979, renovada e alargada em outubro de 1980. À distância de 40 anos, percebe-se, e talvez se recorde com nostalgia, o quanto a sua social-democracia era e foi um grande projeto de liberdade e de emancipação para Portugal.