21 set, 2022
A morte da rainha Isabel II, a transmissão da coroa para o novo monarca Carlos III e, sobretudo, o espetáculo cerimonial das exéquias fúnebres, acompanhadas por centenas de milhares de britânicos in loco, e por centenas de milhões de espetadores através da cobertura noticiosa televisiva em todo o mundo, entrarão seguramente para a História. Foram 11 dias de suspensão temporal da História, na encenação ritual e mediática de uma espécie de presente contínuo ou de dia único interminável, encerrado na passada segunda-feira, na abadia de Westminster. Ali começou o reinado, em 1953; ali tudo terminou, em 2022 – depois de 70 anos de dedicação ao Reino Unido, à Commonwealth e à causa da exemplaridade liberal e democrática, desde a reconstrução do pós-II Guerra à era da incerteza, da tribalização e da superficialidade de hoje.
A monarquia não é um emprego que se ocupa de segunda a sexta-feira, das 9 às 17h, 4, 8 ou 10 anos: é uma vida inteira de abnegação, dignidade, dedicação e serviço ao bem comum. Isabel II foi “a” rainha, e um exemplo único – não haverá outro no tempo das nossas vidas – de “gravitas” institucional, inspiradora, na sua continuidade evolutiva. Camões escreveu um dia sobre D. Fernando que “um rei fraco faz fraca a forte gente”; a rainha Isabel II foi sempre uma fortaleza tranquilizadora (mesmo na sua fragilidade de ser humano) que manteve forte a (sua) forte (e diversificada) gente.
A emoção coletiva, a empatia devocional das multidões, o sentimento de proximidade filial e afetuosa que os britânicos por ela expressaram – e até o respeito reverencial que as centenas de chefes de Estado ou dignitários lhe tributaram na cerimónia do funeral – é um mistério que desafia a lógica demasiado asséptica, abstrata, racional e instrumental da política. O republicanismo mais empedernido não compreende isto, troça do ritualismo “medievalista” e proclama a sua superioridade democrática, achando, até, que o luto nacional português pela monarca é “ridículo” e “pacóvio” (Bloco de Esquerda dixit!). Faz mal.
O eterno confronto entre monarquia e república não ultrapassa, muitas vezes, a superficialidade das formas (chefia hereditária vs. eletiva) e não chega a equacionar o que interessa: nação a nação, evolução histórica a evolução histórica, qual das formas de regime melhor serve ou serviu na sua circunstância específica, evitando o maniqueísmo moralista de rotular todos os tronos como velhos, “tirânicos” ou inúteis e todas as presidências como modernas, democráticas e úteis. A larga maioria das monarquias que hoje existe no mundo reina sobre democracias consolidadas de nações desenvolvidas; e os autoritarismos ditatoriais, os imperialismos agressivos ou os iliberalismos que espreitam são…republicanos. Repare-se na distância – moral, política e materialmente mensurável –, que vai do Reino Unido, da Noruega, da Oceânia ou do Japão à Alemanha Hitleriana, à URSS-Rússia, aos caudilhismos presidenciais latino-americanos ou à China. E para só falarmos do Reino Unido e do nosso Portugal, repare-se que a monarquia britânica é liberal desde 1689 e rege-se pelo sufrágio universal desde 1918; enquanto a 1.º república portuguesa não se recomendou pela liberdade, a 2.ª foi ditatorial e só a 3.ª (repleta de problemas) consagrou o democrático voto para todos, em 1976. Para lá da pompa e circunstância das exéquias fúnebres de Isabel II, sem dúvida encenadas para a espetacularidade mediática, o mistério sociológico e emotivo da devoção das multidões interrogou-nos por estes dias: e ele reside precisamente no laço afetivo da monarquia e na maternal afabilidade com que Isabel II marcou o seu (e nosso) longo tempo.