11 dez, 2024
Um dos melhores livros que alguma vez li sobre a Idade Média foi «O Tempo das Catedrais», de Georges Duby. Não tinha de ser um historiador francês o seu autor, mas só um grande historiador francês, como Duby, o poderia ter feito tão bem. Porque a França medieval foi o reino-pátria das mais majestosas igrejas e mosteiros do tempo, desde as abadias de Cluny ou Cister às cinco grandes catedrais, de Paris, Reims, Chartres, Amiens e Saint-Étienne. Houve Gótico “radiante” um pouco por toda a Europa, mas a arquitetura religiosa francesa do tempo impôs-se pela sua especial concentração, beleza e capacidade de evocar a transcendência.
Vivemos hoje em sociedades secularizadas, se não mesmo de laicismo radical. A cristandade europeia de outrora já não se descortina nem sequer no substrato de valores da identidade do velho mundo. E em França, um dos maiores pilares da catolicidade até aos finais do século XVIII, a grande revolução introduziu um abrupto corte histórico, de descristianização jacobina, de culto à República e de laicidade institucional e mental que veio até hoje.
Apesar disto tudo, a reabertura da Catedral de Notre-Dame, em Paris, foi um momento sublime de reencontro, dos que lá puderam estar ou dos milhões que a televisionaram, com o sentido de Deus. Semidestruída por um incêndio há mais de cinco anos, a centralíssima igreja parisiense (foi a partir dela e da Île de la Cité que a cidade se desenvolveu) renasceu das cinzas graças ao trabalho notável de mais de dois mil artesãos, da generosidade de incontáveis bem-feitores e da vontade da promessa feita por Emmanuel Macron. Cinco anos de obras produziram o primeiro restauro integral da Notre-Dame em 860 anos; e dado que a construção inicial demorou 180 anos (c.1163-c.1345), é possível que nunca ninguém tenha visto a catedral parisiense com a luminosidade e a beleza da sua nova versão!
É irónico que a mesma França de 2024 tenha produzido dois momentos tão díspares entre si, como a ridícula versão woke da Última Ceia na abertura dos Jogos Olímpicos, em julho, e a sagração da Notre-Dame agora. A primeira proveio do impulso secular pós-moderno que se permite ridicularizar o cristianismo ou ser antissemita…mas temente em relação ao Islão; a segunda proveio do mais fundo da alma europeia, que sabe reconhecer, fazer reviver e projetar um legado de séculos porque - como o disse o presidente francês - somos herdeiros de um passado maior do que o presente.
Desafiando o protocolo laico de «La République», Macron discursou no interior da Notre-Dame. A república a que ele (ainda) preside está em crise económica, retalhada politicamente e insegura nos seus valores e no seu lugar na Europa (e no mundo). Por isso o presidente quis fazer do “ensemble” de vontades que permitiu reerguer a catedral uma metáfora do que pode e deve ser uma nação unida na fraternidade, na alegria e no orgulho. Por sobre uma política divisionista e radicalizada, quis colocar uma dimensão e uma energia de encontro e de (re)conciliação. Com um governo em interinidade, embora não renunciando, em estilo gaulista ou bonapartista, a “une certaine idée de la France” que o faz querer ser árbitro da ordem internacional (daí o encontro trilateral entre ele, Trump e Zelensky), o presidente pretendeu fazer da cerimónia religiosa um “choque de esperança” - ou, como titulou o Libération, mais cético, “um frágil sopro de ar” e “um instante fugaz de unidade”. A França não está bem, a Alemanha idem; os Estados Unidos são uma incógnita e as guerras no mundo uma certeza. Terão sido estes os motivos de oração dos presentes, em corpo e em espírito, na eterna catedral parisiense?