13 mai, 2017
Naquela que terá sido uma das mais relevantes interpelações à comunidade de crentes reunida, por estes dias, em devoção mariana o Papa Francisco disse: “Peregrinos com Maria...Qual Maria? (...) a primeira que seguiu Cristo pelo caminho «estreito» da cruz dando-nos o exemplo, ou então uma Senhora «inatingível» e, consequentemente, inimitável? A «Bendita por ter acreditado» (cf. Lc 1, 42.45) sempre e em todas as circunstâncias nas palavras divinas, ou então uma «Santinha» a quem se recorre para obter favores a baixo preço?”.
É uma interpelação que desassossega, mas que impõe a todos uma postura simultânea de auto-questionamento e de disponibilização para a ação.
Se nos apropriarmos deste ‘modo de ver’ e o aplicarmos à cobertura que os média nacionais fizeram da visita Papal – ‘Jornalismo?... Que jornalismo?’ – podemos, numa naturalmente falível leitura ainda marcada pela proximidade aos eventos, salientar algumas observações pertinentes.
A primeira tem a ver com a escala. Milhares de jornalistas produziram milhares de caracteres, centenas de peças de audio, video e multimédia e ocuparam também centenas de horas em ‘diretos’ e ‘emissões especiais’. Seria impossível avaliar toda esta produção com atenção e seria igualmente impossível garantir que não se abusou da repetição, não se cometeram erros, não se disseram asneiras, não houve ações à margem do eticamente aceitável. Houve de tudo isso um pouco, como é normal numa cobertura gigantesca de eventos mobilizadores.
Dito isto, os erros, as repetições e, sobretudo, os exageros/abusos aconteceram mais na produção de umas empresas do que noutras. E isso leva-me à segunda observação – algumas delas preparam o trabalho jornalístico considerando a natureza do evento, a sua memória, ou a cronologia da narrativa, enquanto que outras parecem ter pegado numa espécie de lista de procedimentos para cobertura de eventos de grande escala... e avançaram para o terreno confiando na destreza e na capacidade de improvisação dos seus profissionais; ‘fez-se’ Fátima como se ‘faz’ um grande evento desportivo ou um festival de música. Dois canais de televisão em particular esticaram esta ideia a tal ponto que misturaram a produção jornalística com uma lógica de entretenimento (e assim nos foi possível ver um cantor ‘improvisar’ em pleno Santuário).
A terceira observação tem a ver com a intensidade. Quem comparasse o trabalho feito pelas principais rádios com o trabalho feito pelos principais canais de televisão ficaria, de certeza, com a ideia de que a cobertura televisiva foi genericamente mais impositiva, mais ruidosa, mais estridente até. Na rádio – mesmo sem a ajuda da imagem – falou-se menos, falou-se de forma mais pausada, diziam-se coisas com mais sentido; tudo parecia mais ponderado, mais medido, mais consistente do que na TV. Esse contraste foi – por estranho que possa parecer – mais visível entre as duas empresas de Serviço Público. Enquanto a rádio, a Antena 1, nos proporcionou um trabalho de enorme qualidade (a começar nas reportagens que diariamente foi transmitindo nos dias que precederam a chegada do Papa), a RTP/televisão deu-nos a ideia de que trabalhou ‘em cima do joelho’, com alguns momentos verdadeiramente inexplicáveis (como o do repórter que não parava de falar – sem conteúdo relevante e sem sentido – durante o momento de silêncio e recolhimento na Capelinha das Aparições).
Quarta e última observação – a presença nas plataformas digitais foi, para algumas empresas, ainda um espaço de replicação dos conteúdos ditos tradicionais (por vezes complementados à custa do voluntarismo individual desta ou daquele jornalistas) mas foi, para outras, já um lugar de produção alternativa ou complementar – com um agendamento próprio e com ritmos diferenciados consoante a plataforma. Neste particular destacaria o que me parece ser a ‘nova vida’ do Jornal de Notícias e o lugar de liderança distanciada e solidamente diferenciada da Renascença.
A interpelação feita pelo Papa Francisco sugere que não há caminhos únicos e se dela nos apropriarmos para avaliar o jornalismo que se produziu na cobertura do Centenário de Fátima percebemos também que empresas diferentes decidiram fazer trabalho diferente; umas apoiaram-se mais no improviso ao passo que outras planearam em detalhe o trabalho; umas fizeram do Santuário mais um dos seus ‘circos’ enquanto que outras nos falaram da natureza única do espaço e do momento. O jornalismo não foi todo igual e não devia nunca ser. Mas compete-nos perceber bem as diferenças antes de fazermos as nossas escolhas ou de – mais grave – nos perdermos na injustiça das generalizações.