01 mar, 2024
Num texto escrito há mais ou menos um ano, o reputado autor em temas de Cultura nos Estados Unidos Ted Gioia dizia que o bem mais escasso do nosso tempo é a confiança. E explicava, de uma forma muito clara, como foi acontecendo a erosão desse bem precioso, em grande parte através da comunicação por via digital, e como nada nesse processo foi natural. A desatenção dos regimes democráticos ao fortalecimento de movimentos políticos cujo único propósito é navegar um cenário inventado de caos (na justiça, na economia, na segurança social, na educação, na saúde, na emigração, na segurança) permitiu que ideias falsas vingassem como "sensações" (a expressão infeliz usada por um ex-primeiro ministro português no início desta semana) e deu-lhes força suficiente para serem não apenas o centro da estratégia de um partido mas também motores de agendamento para todos os outros.
O jornalismo britânico percebeu tarde demais, com o Brexit, que não podia enfrentar o desafio de uma comunicação política (muito forte em espaços digitais) carregada de informação falsa com as suas habituais ferramentas de trabalho e o jornalismo norte-americano e brasileiro tiveram momentos semelhantes depois das vitoriosas campanhas eleitorais de Donald Trump e de Jair Bolsonaro.
Lendo com atenção o texto "Como funciona o algoritmo do nosso voto" percebemos que chegou a nossa vez. A presença de atores internacionais na atual campanha eleitoral em Portugal é uma realidade. A receita é a mesma de sempre - aproveitar as fragilidades dos enquadramentos legais nacionais para regular publicações em espaços e plataformas transnacionais e divulgar materiais com informação errada, com informação deturpada ou mesmo com informação falsa. Múltiplas contas, em múltiplas plataformas, replicam entre si os mesmos conteúdos até que consigam visionamentos suficientes para garantir a entrada nos fluxos sugeridos de um número significativo de pessoas. Atingido esse patamar, torna-se irrelevante se - por denúncia persistente ou por ação de autoridades nacionais (como aconteceu com a "sondagem" feita por uma empresa estrangeira não legalmente autorizada) - os ditos conteúdos continuam ou não disponíveis. A sua missão está cumprida e, antes mesmo de as plataformas intervirem, desaparecem, como aconteceu com o canal de YouTube "Bolsonaristas em Portugal", ao fim de menos de uma semana.
Não precisaríamos de ver isto acontecer por cá para termos a certeza de que a estratégia funciona e de que não há forma ágil e eficaz de impedir a sua implementação. Temos, apesar de tudo, ainda algum espaço de manobra disponível na forma como gerimos esta torrente de conteúdo poluído. E temos - sobretudo - que exigir aos nossos agentes políticos, muito pressionados pela entrada na última semana de campanha, que não participem, de forma alguma, no "jogo". Vão perder sempre. E a Democracia também.