25 out, 2024
Portugal estreitou. Outrora um Império de dimensões extraordinárias, mantidas durante uma duração não menos improvável. Agora uma exígua divisão na casa europeia. Num curto espaço assim, as nove horas de distância de “Para ti Maria”, a canção dos Xutos, perderam qualquer adesão que pudessem ter à realidade. Nesta geografia apertada, o histórico peso que Lisboa sempre teve, ganha ainda mais significado. Nunca li o termo “olisipocêntrico”, mas parece ter uma sonoridade digna e professoral: “Olisipocêntrico”; Portugal é um país “olisipocêntrico”.
Ora, se é na cidade que tudo acontece e para onde tudo converge, o resto é paisagem, como se diz. Ou então província. Mesmo que se trate de uma Capital de Distrito ou outra cidade com importância, numa região autónoma, por exemplo. Província. Um termo que quando se ouve, parece convocar uma abrangência capaz de acomodar tudo o que não seja Lisboa. Para os mais alheados, até o Porto cabe neste âmbito. Lamento. Sei que confirmo a impressão que os portuenses têm dos lisboetas, mas há mesmo quem pense assim.
Tem-se uma ideia da “província” como o lugar onde vaga um “segredo”. Alguma coisa que escapa àqueles que vivem na grande cidade. Alguma coisa de acesso impenetrável. Alguma coisa que se pode apenas vislumbrar. Ao longe; sem nunca realmente chegar a alcançar. Talvez numas férias, talvez numa visita de fim-de-semana. É onde o pão é verdadeiro, a carne é melhor, a cal que cobre as casas participa da pura ideia do Branco. É onde as pessoas são mesmo pessoas, onde, aquilo que no fundo sabermos ser um certo atraso, se confunde, aos olhos estragados do habitante da urbe, com virtude. É o lugar, onde as manifestações de religiosidade mantêm um vínculo à corrente invisível que nos liga aos nossos antepassados. Onde Missas são mesmo Missas, mais dignas de Santidade do que qualquer outra. Ora, isto não é assim.
Em primeiro lugar não existe “província”. Pelo menos não nestes termos. Há muitas. Conheço algumas. O Alto Alentejo litoral, a Beira Alta, alguns recantos madeirenses (por casamento), mas sobretudo o Vale do Ave, no Baixo Minho. Foi lá que cresci e é para onde sempre regresso. Conheço por isso, razoavelmente bem, a realidade da Celebração Eucarística naquelas redondezas. E não é famosa. É como se as modas e tendências que poderíamos facilmente reconhecer como uma corrupção urbana fossem absorvidas e recicladas com pouco critério pelo clero local. Se há verdadeiramente um “segredo”, não serão certamente estes padres os seus guardiões, ocupados que estão em acomodar-se ao que o espírito do século, aqui e ali, vai soprando.
Num Domingo qualquer, como o passado Domingo, por exemplo, entramos na Igreja de uma paróquia do Concelho de Felgueiras, mas poderia ser de Guimarães ou Santo Tirso. Não será certamente aquela antiga e solene devoção que associamos aos nossos avós que encontramos. Em vez desses sólidos gestos de piedade exterior, assistimos a uma coisa diluída, transigente, de bem consigo própria e com o mundo fora das quatro paredes do templo. É como se a Igreja tivesse abdicado da impenetrabilidade da fortificação em detrimento da acessibilidade das esplanadas. Facto curioso quando muitas destas Missas são celebradas em edifícios da Idade Média, desenhados para a função militar.
Falo de coisas como: raparigas a acolitar, genuflexões tímidas ou inexistentes, Ministros Extraordinários da Comunhão cuja função passou a ser ordinária, mãos que afagam, em vez de bater no peito durante o Acto de Contrição, comunhão exclusivamente dada na mão e por vezes negada a quem quer receber na boca ou de joelhos. Perdoem-me. Tenho para mim existir uma relação entre gestos fortes e uma doutrina forte, expressões solenes e uma religiosidade solene, entrega total e uma fé total. Reparem, posso estar enganado. Mas não deixa fazer lembrar o lenhador que opta derrubar carvalhos com um canivete. Observo a assembleia. Aqueles rostos. Encimam corpos ásperos e membrudos como personagens dos Contos de Fadas da Paula Rego. Feitos para sofrer. Os mesmos que encontramos no Santuário de Fátima, joelhos esfolados, a rastejar em sangue o que não ajoelham o resto do ano inteiro.
Não sei porque é que isto é assim, exactamente. Vou especular. A ideia de que “actualização” é virtude? O complexo de lugar pequeno que leva à emulação de comportamentos que se julgam modernos? A atracção pelo kitch ser mais poderosa em lugares mais remotos? Ser mais cómodo relaxar do que contrair? Mais popular? Nada disto colhe. Serviria também certas cerimónias litúrgicas em paróquias urbanas. Talvez possa ser que a diferença entre cidade e província esteja esbatida. Sabemos tudo o que queremos. Quando queremos. Não há distância que proteja da corrupção o “segredo” .
Mas se este espírito casual tomou conta do cerimonial litúrgico, o mesmo não se pode dizer da maneira como certos padres o querem impor. É sempre notável como a permissividade para com excepções ou casos pontuais, torna-se, sem darmos conta, no regulamento em vigor. Os Ministros Extraordinários da Comunhão tornaram-se Ministros Especiais da Comunhão. Há os sempre, em todas as ocasiões. E os episódios de pessoas a quem foi negada a comunhão por se terem ajoelhado para a receber ou pura e simplesmente terem aberto a boca, infelizmente são comuns. Aconteceu-me. Na Província.
Também aconteceu este Verão numa paróquia da Diocese de Aveiro. A da Sé. Um sacerdote chamado Fausto (curioso nome) está empenhado em fazer dos fiéis que à Sé acorrem Werthers ocasionais. Não permite que se comungue de joelhos e, ao dar a comunhão, goza abertamente com os que preferem recebê-la na boca, perguntando se acaso têm mãos impuras.
É intrincado fazer uma correcção fraterna sem sermos tomados como presunçosos. O orgulho é tramado e a vaidade também. A nossa e deles. Mas, debaixo das devidas circunstâncias não parece que devamos comer e calar. A não ser que seja ajoelhados e na boca.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.