06 dez, 2024 • Manuel Fúria
Entre 2007 e 2016, com a ajuda de algumas gentis almas, fui responsável por uma editora de discos. O seu nome era Amor Fúria. Uma ousadia incandescente e inconsciente. Daquelas que surgem num certo tempo e num certo lugar, que são o tempo e o lugar certos. Capaz de convocar, não o espírito da sua época, mas o espírito propício para a sua época. Coisas diferentes. A segunda, que é a que interessa, tem mais a ver com interferir com originalidade. E ter a fortuna de existir vontade para essa originalidade em particular, e não outra. Foi assim connosco.
Certo mês de Junho resolvemos participar no Arraial de Santo António de Lisboa. Vendendo cervejas e chamuças. Uma experiência sofrível: não chegámos sequer a recuperar o dinheiro investido. Foi assim que aprendemos, que, podendo, o lisboeta escolhe sempre Sagres.
O estaminé que montámos em Alfama chamava-se “A Barraca dos 3 Antónios”. Nenhum de nós era António, mas levámos enormes painéis com três grandes desse nome. Figuras inspiradoras para nós: Santo António de Lisboa, o Padre António Vieira e António Variações.
Os dois primeiros eram evocações intangíveis. Heróis antigos. Inacessíveis. De alguma maneira representavam a nossa bazófia pós-moderna em lembrarmo-nos deles: “Olhem para nós, pessoal das bandas, a valermo-nos de Santos e Padres da grande literatura portuguesa!”. Já o último, estava a valer.
Para começar, podia estar vivo. Só não estava por azar. Um azar chamado SIDA: para todos os efeitos, um azar, pobre António Variações. Estava perto, tinha existido na nossa infância e tinha tudo a seu favor: a sua singularidade era extraordinária. E nós também, por nos termos lembrado dele, antes de toda a gente começar a reclamá-lo para si.
Quer dizer, já tinha havido os Humanos. Mas os Humanos foram precoces. Ainda não existia vontade para essa originalidade. Apesar de tudo foi mesmo connosco, Amor Fúria e claro, a FlorCaveira, que o esquema mental mudou de vez. O português voltou a ser a língua natural para uma canção de esquema americano.
Variações representava isso. As suas canções eram impossíveis de estranhar. Só entranhavam. Era preciso ser muito obtuso para o desdenhar. E nós, portugueses, sabemos ser obtusos como os melhores.
Vinha de um lugar que era exactamente o mesmo no qual nós pretendíamos assentar arraiais: uma superfície de encontros, onde o que era daqui se juntava ao que era de acolá, para dar origem a uma coisa mestiça. Que fosse inteira, indivisível. O António Variações era indivisível, como nós queríamos ser indivisíveis: Braga-e-Nova-Iorque, Santo-Tirso-e-Manchester, Chiado-e-a-Baía, Alvalade-e-Nashville, e assim sucessivamente.
A sua excentricidade, para ser franco, era acessória. Formidável, mas acessória. Assim como tudo o resto. Se o António Variações não tivesse inventado aquelas canções, seria apenas uma ave rara da noite lisboeta dos anos 80. Se vestisse fato e gravata, amá-lo-íamos da mesma maneira incondicional.
Por isso, qualquer turpilóquio que tente capturar e absolutizar um lado da sua vida ou do seu comportamento, será sempre uma maneira de poluir, compartimentar, amesquinhar o grande António. Uma falta de consideração. Nesta semana tem sido recordado pelos 80 anos que faria se estivesse vivo. E não faltou quem lançasse as garras sobre um ou outro aspecto da sua biografia.
António Variações não é o entusiasta da arte popular, quando ninguém queria saber da Rosa Ramalho. Não é o grande inovador unissexo, quando só havia barbeiros e salões de beleza. Tampouco é os seus desejos, quando os seus desejos eram socialmente reprováveis. Sei dos coleccionadores mais peculiares, de barbeiros audazes, amantes moderníssimos. E daí?
Primeiro e último de seu nome, António Variações é porta-voz da grande aventura da existência humana em canções de três minutos, feitas de plástico. O resto é para os biógrafos. Quando somos francos em relação à pequena aventura da nossa vida, corremos o risco de ser belos. Como ele foi.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.