13 dez, 2024 • Manuel Fúria
Quando era pequeno e íamos a Lisboa, assombrava-me este terror singelo: a possibilidade de me cruzar com um dos malucos da esquina da Avenida do Brasil com a de Roma. A trupe de Napoleões alfacinhas à qual o Hospital Júlio de Matos concedia soltura, dava azo às mais emocionantes peripécias. Já não me lembro de nenhuma. Tenho pena disso. Mas o bloco de gelo que me colava a língua ao fígado, quando calhava ser surpreendido por um desses Quixotes, sobrevive ainda nesta alma.
Curiosamente, sumiram. Nunca mais ninguém os viu. Mais uma página para o conjunto “Lisboa Desaparecida”, da Marina Tavares Dias. Para onde foram, então?
Pois bem. Segundo os especialistas do Observador e os divulgadores de novidades da Revista do Expresso, um pouco para todo o lado. Há uma epidemia de loucura que, enquanto escrevo, grassa, invisível, pelos cérebros de quase toda a gente. E se não lhe calhou em sorte, é porque ainda não surgiu ocasião para o veredicto. Como tudo, neste barulhento grão de poeira cósmica, é uma questão de semântica. Substitua-se “loucura”, por “saúde mental” e já sabe do que estou a falar.
Consideremos o melangente final de “Funeral Blues”, de W.H. Auden:
“The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.”
Vai tudo abaixo. Alguém morreu e a Criação é o seu sepulcro. Coisas vastíssimas como o oceano. Incompreensíveis como os astros. Tudo é morte.
Retire-se o fulgor literário. A precipitação existencial. Retire-se a pose. Hoje, quando se trata das nossas cabeças, o expediente é o mesmo: tudo é Saúde Mental. (Como tudo são Alterações Climáticas. Como tudo é identidade. Como tudo é sexo.)
Ouçam: por mim evitava o tema. Tenho é este pequeno insecto despertador cá atrás no pescoço, a arranhar: “saúde mental, saúde mental, saúde mental”. Não a minha, cujo estado, para bem de todos, cá em casa, ignoro no total. O cricar obstinado do bichinho é que se tornou insuportável. Quanto mais rápido me livrar disto, melhor.
Toda a publicação dedica imensidões editoriais ao tema; há até quem já faça da Saúde Mental caderno permanente: como a secção “Internacional” ou as páginas do “Desporto”. Certas obsessões de um determinado período, dão em não dar descanso. Até que passam.
Como a SIDA, por exemplo. Uma maioria absoluta desconhece hoje por completo o que é a SIDA. Há até uma nova modalidade jornalística que consiste em perguntar: “O que é feito da SIDA?”. Coisa que também ignoro.
Assim como cresci a aprender todos os detalhes escabrosos sobre esta maleita, a miudagem de agora saberá tudo o que interessa saber sobre: depressão, bipolaridade, síndrome de défice de atenção, transtorno obsessivocompulsivo, e todas as variações químicas que no cérebro humano forem, entretanto, sinalizadas.
É bom de ver que tudo o que escrevo é pura intuição. Não tenho um dado, um número, uma consulta de informação sistematizada. Não pretendo ser fonte fidedigna de nada. Fujo dessa práctica abjecta. Ajudam-me para o caso duas providenciais malformações do carácter: preguiça e vaidade. Tento resolver em pose, tento resolver em estilo. Aguardando resultados.
Contudo reparem: se se desse o caso de ser um dos muitos proponentes do credo da Saúde Mental, estaria safo. Questões de carácter não seriam um fardo. Em vez de preguiça, S.F.C., Síndrome de Fadiga Crónica; em vez de vaidade, T.P.L., Transtorno de Personalidade Limítrofe. Outra possibilidade seria dizer - “Invoco espectro de autismo!": essa vastíssima e esotérica linha, que viaja para lá da fronteira do sonho. Cabe tudo: ira, gula, inveja... estão a ver onde quero chegar?
Ora aqui está um dos truques que me arranha o pescoço: a usurpação dos termos. A deterioração ontológica, total. Um léxico clínico, para um mundo terapêutico. Não há mais melancolia, nem noites profundas da alma. Só depressão. Os técnicos da linguagem querem encriptar-nos a vida em tristes e desmoralizadoras siglas. O mundo apequena-se. A existência tolhe.
Não se diagnostica a aventura humana. Nem se navega pelos labirintos do destino com uma bula medicamentosa na mão, como quem segura um mapa. Enfrenta-se. Às escuras, se necessário. De peito aberto, se possível. Doerá, certamente. Mas vive-se, morre-se, e escrevem-se os mais belos romances sobre o assunto. Podemos até medir o pulso a um dado tempo, pelos seus mais belos romances. No entanto, consideremos as nossas livrarias: “12 Regras Para a Vida”, do Peterson, facilmente o livro mais importante da década, é para todos os efeitos, um livro de auto-ajuda.
Tenho um fraquinho por outros tempos, vão ter de me desculpar. É o que é. Sobretudo por não serem estes. Mas convenhamos: entre a emoção de passar à porta do Júlio de Matos e o tédio de morte desta Lisboa higienizada pelos toalhetes da Saúde Mental, não é preciso chamar o Diabo.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.