20 dez, 2024 • Manuel Fúria
Recordo a mensagem de um amigo antigo. Há uns anos, pela época de Natal, tínhamos por costume enviar mensagens uns aos outros. Depois veio o WhatsApp, mas apaguei o WhatsApp. Depois veio o casamento e passei a enviar postais.
A mensagem rompia com a ideia do Natal ser a festa da família. Contrapunha, com engenho esotérico e pose (muita), que o cerne estaria antes numa poderosa ideia de abandono missionário. Entusiasmei-me. As mensagens deste amigo antigo eram invariavelmente entusiasmantes. E eu era, como ainda e sempre, uma alma susceptível.
Nesse Natal, e nos que se seguiram, martelei na ideia, vocal e triunfante. Um Autólico de trazer por casa, que toda a santa consoada fazia questão de caturrar para a audiência familiar: “O que está verdadeiramente em causa não tem nada que ver com o que estamos aqui a fazer.”, “O Natal não é a festa da família!”. Pobre senhora minha mãe. As ousadias que teve de suportar.
Padecia, (ainda padeço), dessa vontade juvenil de ser dono de um rasgo, e que da fenda que se abrisse, trespassasse uma luz inteiramente nova sobre a convenção instalada. Era atraído pela ideia, como agora se diz, às duas e três pancadas, de ser “disruptivo”. Hoje tenho a tarefa facilitada: para se ser diferente, basta ser-se normal. O gesto “disruptivo”, tornou-se ubíquo e sistemático: para trazer uma nova luz às coisas, basta soprar um pouco da velha escuridão.
Outro dia, no Colégio dos miúdos, a propósito de uma actividade qualquer, dizia-me assim um pai: “Disruptivo, isto tem de ser disruptivo, pá!”. “Cuidado que a fronteira entre disrupção e mau gosto, é uma linha por vezes ténue”, respondi. Foi esta a coisa mais espirituosa que me ocorreu, quando na realidade o que gostaria de ter dito era: “Isso aborrece-me de morte.”. Não o fiz, seria deselegante, pois claro. E incompreendido.
Ultimamente tenho fugido de certas incompreensões para não perder tempo em diálogos estéreis. Não é que os outros não me mereçam todo o afinco, todo o zelo, todo o esforço. Isso e muito mais. Muito mais (muito mais). Mas neste, como noutros tópicos, eis o que aprendi: mais vale estar calado.
Escrevia que agora envio postais. Tem sido assim. Geralmente dois cartões dentro de um envelope: uma imagem com alguma representação clássica de uma cena do Advento, e uma fotografia de família. Todos gostam de receber. Um gesto dos mais simples. Dos mais memoráveis. É uma antiga convenção. Já quase ninguém a pratica. Basta soprar um pouco da velha escuridão.
Mencionei o vasto presépio que montamos cá em casa? Já o deveria ter feito. É formidável! O inconcebível afrontamento escatológico, o grandioso mistério que coloca em contracena anjos, pastores, magos e burros, numa escala quase-quase de brincar (e como não brincar?). Digno de reportagem de programa da manhã. Consigo imaginar o João Baião, saltitando: “Então, quem se lembrou de fazer isto?”. Quem cá vem, não se esquece. É uma antiga convenção. Já quase ninguém a pratica. Basta soprar um pouco da velha escuridão.
Contei dos bolos de mel que a Catarina confecciona com denodo e muito amor? Este ano foram 48. Entregues em mão. Pequenos discos de assomo aromático. Pungentes cápsulas de sabedoria insular. Desaparecem num estalar de dedos. Regalo para o estômago e para o espírito. Uma antiga convenção. Já quase ninguém a pratica. Basta soprar um pouco da velha escuridão.
E os cânticos tradicionais? Pôr a canalha a ensaiar para cantarem ao presépio? Na grande noite que aguardamos com expectativa? Cantem connosco: basta soprar um pouco da velha escuridão.
Tudo isso derrama de um único e singular momento. Impenetrável. Um momento escuro. Sim, escuro: do baixo do subsolo, sob o rés-do-chão deste mundo que os homens pisam, na mais insalubre e melancólica gruta que se possa imaginar, entre a palha, o gado e o esterco, uma luz abalou os pilares que sustentam este cosmos. Disrupção das disrupções; convenção das convenções. Num tempo em que os recém-nascidos eram largados para morrer na floresta, o Rei dos Reis, não era um homem: nem grande, nem poderoso, mas um bebé. Fragilíssimo.
Quando formos assaltados pelo tolo desejo de sermos “disruptivos”, não nos precipitemos. Recordemos essa noite de todas as noites, e essa luz de todas as luzes, que da melangente gruta de Belém, brotou. Imitemos então, com diligência e convicção, as mais vetustas convenções. Quanto mais remotas, melhor (mais perto de Belém, pois claro). Digamos, a título de exemplo, aquilo que vou agora passar a escrever e que desejo a todos, com sinceridade: “Um Santo Natal”. É uma antiga convenção. Já quase ninguém a pratica, etc., etc.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.