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Manuel Fúria
Opinião de Manuel Fúria
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2024: Podia ser pior

27 dez, 2024 • Opinião de Manuel Fúria


Tirem a um homem o ridículo e tiram-lhe a vida.

Chego ao fim do ano com menos cabelo, menos um dente, menos músicos a tocar comigo. Em contrapartida, ganhei mais um filho e passei mais horas a andar de skate. Podia ser pior.

Rezei mais e rezei melhor. Com o translúcido auxílio da torcida celeste a que chamamos Santos. Eis o pódio deste ano: São Pio X, São Josemaria Escrivá, Beato Carlos de Áustria. Este último atendeu-me numa intenção particular, por isso fui com o mais velho em romaria até ao túmulo onde jazem as suas relíquias mortais. Ontem mesmo. Podia ser pior: o início da oitava de Natal, que este ano calhou na festa de Santo Estevão.

Donald Trump ganhou e o mundo ficou na mesma. É formidável como as mais catastróficas previsões dão sempre nisto. Infalível. Mais espectacular só o modo cândido como a gente se permite a estes preparos: grita-se fogo, os nervos em brasa, um lufa-lufa galináceo, inocente, descabeçado.

Parece que ninguém aprende: o homem caminhou, inabalável, através de 2 tentativas de assassinato e uma condenação montada no tribunal do condado mais hostil que conseguiram angariar. Os meios de comunicação social contra ele, os escribas contra ele, Hollywood contra ele; a minha sogra contra ele, e mesmo assim. Tenho curiosidade em saber como será compreendido tudo isto daqui a 50 anos; oráculo: ninguém vai querer saber. Por ora, monstro como dantes; podia ser pior.

A direita ganhou as eleições legislativas com estrondo. Todos perceberam a singularidade histórica, menos o PSD. Entre um PS de contrafacção e um Chega de talheres, até agora preferiu ser tudo, menos aquilo que os portugueses lhe pediram, no dia em que introduziram o papelinho no caixote: que liderasse a maioria. É pena, é néscio, mas poderia sempre ser pior.

Comecei em Outubro, para a página da Rádio Renascença, esta exacta coluna pela qual o leitor passeia agora a vista. Bigodes de Camilo, monóculos de Chesterton, cigarros de Rodrigues pululam na minha imaginação. É ridículo? Claro que é ridículo. Mas tirem a um homem o ridículo e tiram-lhe a vida. Sério como tudo o que é de antigamente, o meu sucinto e correctíssimo editor acolheu a esforçada e quebradiça pena que trago na algibeira. E deu-me esta garantia de Tchekov: liberdade e coragem para escrever a meu bel-prazer. Ainda bem, porque só sei escrever assim. Foi-me dado este coração demasiado óbvio, este focinho nocturno de raposa antes de ser atropelada, este fastio a moscas-da-chuva e dentes de mentiroso. Calhou como calhou. Acreditem, podia ser muito pior.

Voltei a tocar ao vivo. Um pouco mais do que nos últimos anos. Uma vez que a soma dos meus espectáculos de 2019 a 2023 foi 2, não era difícil. É verdade que decidi parar no fim de 2018. Mas depois gravei “Os Perdedores”, que saiu em 2022. Uma coisa em ruptura com muito do que tinha feito até então. Este ano houve 4 convites para tocar e fiquei surpreendido.

Antevi o silêncio. Doeu-me a barriga. Nem quis saber do número de bilhetes vendidos. Tudo o que eu queria era o balcão do Galeto. Tudo o que eu queria era um combinado Nº 8. Mas cheguei ao palco e vi gente. Não era pouca. E cantavam. Gritavam. Sabiam de canções que eram segredos. Embalado, lancei “O Último Que Apague a Luz”, uma canção nova. E preparo um disco novo. Podia ser pior.

Fui a pouquíssimos concertos. Só 2 interessaram verdadeiramente: Fontaines D.C. e os Pontos Negros. Foi melhor o dos Pontos. Completamente livre dos lugares-comuns ideológicos que parasitam a música pop. Obrigado. É verdade que são meus amigos e que, em podendo, favoreço amigos. Mas os Pontos não precisam de cunhas. Sempre foram bons de roque. Mesmo que só toquem de 2 em 2 anos. Portugal é capaz das melhores bandas. Pena estarem condenadas a pedalar na lama. Árduo, mas podia ser pior.

O Ryan Adams editou 5 (cinco) discos de originais. Por ordem: “1985”, “Sword & Stone”, “Star Sign”, “Heatwave”, “Blackhole”. Mesmo que não gostasse, gostaria. Tentaram acabar com o velho morgado, mas o velho morgado não deixou que acabassem com ele. E eu não resisto a uma boa história de injustiça. Um dia destes conto. É uma história tramada, mas poderia ser pior.

Li bastante. Mais do que em 2023: Cormac Maccarthy, o Cardeal Sarah, Adília Lopes. Mais ensaio, entrevistas e crónicas, do que ficção. Tentei fazer fichas de leitura: cai-me o cabelo, caem-me os dentes, cai-me a memória. Comecei uma, mas não acertei com o esquema e desisti. Tenho de voltar a tentar em 2025. Mas podia ser pior.

E pronto. Está feito. O ano acabou. Mais 365 dias passaram desde que nasceu o Salvador e, por enquanto, nenhum abaixo-assinado triunfou sobre o modo como se convencionou contabilizar os séculos. Dadas as circunstâncias sim, poderia ter sido bem pior. Anima-nos, porém, hoje e sempre, esta cristianíssima clareza: o melhor está sempre para vir.


Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome

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