02 nov, 2021
Estas breves considerações sobre a eutanásia mantêm-se no plano ético, aquém dos níveis respectivamente político, económico ou religioso; limitam-se a dois registos de considerações, a dignidade e a autonomia do ser humano.
A dignidade da pessoa humana é compreendida e invocada de modo profundamente diferente pelos que militam contra a eutanásia e pelos seus partidários. Com efeito, os partidários da eutanásia consideram que a situação de grave sofrimento, físico ou psicológico, gera na pessoa uma degradação da sua dignidade, de tal modo que esta degradação se torna «indigna» do estatuto de pessoa. Noutros termos, para estes partidários as circunstâncias concretas de sofrimento em que a pessoa se encontra podem fazer perder a dignidade pessoal. Esta opinião está gravemente errada: a dignidade da pessoa não depende de uma situação concreta que afecta a pessoa (sofrimento, perda de capacidades mentais ou mesmo posição de actos muito repreensíveis), mas ela tem o seu fundamento no estatuto inalienável e inviolável da pessoa enquanto membro da comunidade humana. É o que os filósofos afirmam ao reconhecerem que a dignidade humana é de natureza ontológica, isto é, provém do simples facto de ser uma pessoa. Portanto, é um erro julgar que a dignidade humana pode ser perdida; podemos ter comportamentos que ofendem a dignidade humana, e viver de modo aparentemente indigno desta dignidade; do mesmo modo, o ser humano pode ser fisicamente e mentalmente diminuído, mas estas perdas não podem ser motivo para considerar que o ser humano perdeu a raiz da sua dignidade e que, por isso, pode ou deve ser eutanasiado.
Os partidários da eutanásia invocam também a autonomia da pessoa, para afirmar que não se pode impedir alguém, que está em grande sofrimento, de exercer o seu direito de escolha e, no caso presente, de escolha da morte. Contudo, nem a autonomia nem a liberdade humana são totais. A autonomia é sempre vivida numa comunidade na qual os actos de todos estão interdependentes. No pano de fundo desta interdependência pode-se perguntar se, eticamente, sou o único «proprietário» da vida que recebi. Considero que não, que não sou o único proprietário da minha vida, mas que devo vivê-la no horizonte comunitário da vida de todos os seres humanos, meus semelhantes. Tal como afirma correctamente a Constituição da República Portuguesa, se a vida é inviolável, isso significa que existe para todos, e para cada um em particular, uma exigência ética radical: ser respeitado na própria permanente dignidade e respeitar a permanente dignidade dos outros. Esta dimensão comunitária da dignidade humana faz compreender que não sou um ser isolado do resto da comunidade e que, portanto, não sou único proprietário nem da minha própria vida nem da dos outros. A vida humana ultrapassa-nos a todos. A pessoa é essencialmente um ser de relação; considerá-la fora do contexto das suas relações vitais parece ser a consequência do individualismo que rege cada vez mais o nosso ambiente cultural. Fazer da autonomia pessoal a justificação de um direito à livre escolha da sua morte consiste em cortar a pessoa da sua constitutiva natureza relacional, comum a cada um de nós.
É, portanto, esta rede de relações constitutivas da pessoa humana que impede considerar a eutanásia como um assunto entregue ao exercício da autonomia individual. Se a eutanásia nos interpela todos, é porque somos todos afectados pelas socialmente graves decisões particulares de cada um. Oxalá que os médicos, que realizam tantas vezes maravilhas que salvam vidas, não caiam na tentação de acreditar que matar pessoas também passa a fazer parte das suas tarefas habituais.
*Michel Renaud, Membro da Academia das Ciências e, de 1991 a 2015, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida