12 fev, 2023
“Bastava uma criança ter sido abusada para ser muito grave”. Sempre que se fala do abuso de crianças no seio da Igreja, normalmente, esta é a frase que encabeça a abertura dos argumentos.
Perante o universo dos casos, será fácil cair na tentação de dizer-se que em Portugal a situação não assume as dimensões de outros países, como os EUA, a Irlanda, a França ou o Chile. Será verdade, mas é preciso ter sempre presente o crime e a vítima - a individualidade do sofrimento, o respeito, a compreensão pelo desespero da vítima. “Bastava uma criança ter sido abusada para ser muito grave”.
Mas é mesmo muito grave. Não só os abusos, mas também o silêncio, o encobrimento e as palavras de alguma desculpabilização.
Esta segunda-feira, conhece-se o relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja, que, a pedido da Igreja portuguesa, fez o levantamento dos casos de pedofilia no seu seio. E, pelo que já se sabe, não foi uma, mas, pelo menos, mais de 400 as vítimas abusadas por responsáveis da Igreja.
Neste crime estão associadas várias dimensões, todas elas negativas e com fortes consequências. O abuso físico e psicológico de menores, a traição do outro - a vítima -, a falsidade dos gestos, a cobardia de um comportamento, a destruição da confiança e da ingenuidade, por vezes o silêncio, o encobrimento e a infidelidade ao Evangelho.
Há ainda uma outra dimensão que é também chocante: como é possível alguém que tem a faculdade de consagrar o pão e o vinho em Corpo e Sangue de Cristo, ter-se mantido nesta mentira? Os que acreditam veem na consagração um milagre só compreensível à luz da fé. Como é possível um agente desse milagre manter-se nas funções com este comportamento?
Não haverá instituição que tanto fale de amor e amizade como a Igreja – É o sintagma e a verdade dos Evangelhos. E é por isso que o sentimento de traição da vítima será tão forte e quase que incompreensível. Como são possíveis comportamentos continuados deste tipo por parte de alguns que receberam a confiança da formação das crianças e dizem professar os evangelhos?
Mas nem só de sacerdotes se alimentou este crime. Há também os leigos que, em lugares-chave, muitas vezes junto de grupo de jovens, praticaram abusos. Como foi possível tanta falta de escrutínio? Como foi possível não olhar, não tentar perceber, ignorar?
É certo que num texto curto é fácil questionar tudo isto e ignorar a dimensão do tempo. O problema é que os abusos não aconteceram – foram acontecendo e não às claras, mas perdidos entre palavras e gestos dúbios que lançavam interrogações e incertezas. Todo este comportamento foi muito grave, vergonhoso, deixando vidas destruídas.
Nem sempre o centro da vida cristã, no caso católico, é o outro - o semelhante. Por vezes, tudo se resume a uma questão de poder e de sombras que inverte a escala de valores, o sentido da missão e o propósito.
Mas este tem de ser um tempo de revisão. Independentemente do relatório que vamos conhecer, a linguagem tem de ser a da verdade e da condenação inequívoca. Mesmo antes do relatório, quer o cardeal patriarca, D. Manuel Clemente, quer o presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, já pediram perdão pelo histórico de abusos conhecido. A Igreja é maior do que os crimes/pecados de alguns dos seus.
Depois de conhecido o relatório, será tempo de definir o que vai fazer-se na defesa das vítimas e quais as medidas de proteção a introduzir no âmbito da Igreja. Que tipo de comunicação vai ser adotada? Que políticas de transparência vão ser introduzidas? Que processos vão ser aplicados? Que formação vai ser dada, quer nos seminários quer ao longo da vida? Que estudos vão ser feitos para melhor se conhecer a realidade e as suas causas? Que medidas preventivas vão ser tomadas para se minimizarem os casos? Que tipo de reparação se vai prestar às vítimas?
Independentemente dos erros ou virtudes que o relatório possa ter, mal seja conhecido, vai iniciar-se a discussão entre a fação A e a fação B - dos que acham que o relatório ficou aquém e dos que acham que o relatório foi longe demais. Mas, para lá dos debates circunstanciais, há vítimas com nome, há culpas, há responsabilidades, há lei e há um Evangelho com mais de dois mil anos que não deixa margem para dúvidas sobre de que lado cada pessoa, cada cristão, seja em que tempo for, deve estar.