15 abr, 2024 • Pedro Vaz Patto
Essa dignidade, também percetível apenas pela
razão humana, decorre claramente da visão bíblica do ser humano criado «à imagem e semelhança de Deus» e da
visão cristã de um Deus que assume a natureza humana, proclama o amor
universal, especialmente para com os mais pobres e vulneráveis, e dá a sua vida
pela salvação de cada pessoa, chamada à comunhão com Ele. Como acentua essa
declaração, a dignidade humana é “ontológica”, ou seja, é inerente a qualquer
ser humano só pelo facto de o ser, independentemente de quaisquer
circunstâncias; não depende da idade, das capacidades físicas ou intelectuais
ou até das qualidades morais; não admite graus (neste sentido “ontológico”, não
no sentido moral, não há pessoas mais dignas do que outras); não se adquire só
a partir de determinada fase do desenvolvimento, não se perde com a doença ou
qualquer deficiência, inata ou superveniente; e também não se perde com a
prática de pecados e de crimes (porque a regeneração moral da pessoa nunca pode
ser afastada). A dignidade humana não é
compatível com alguma forma de redução da pessoa a instrumento ou objeto, e já não
fim em si mesmo.
Partindo deste princípio, esse documento enumera,
numa perspetiva coerente e global, vários atentados à dignidade humana: o
aborto, a pobreza, muitas das guerra, o tráfico de pessoas, a exploração
laboral, os abusos sexuais, a maternidade de substituição, a eutanásia, a pena
de morte, a hostilidade para com migrantes, etc.
Dessa noção da dignidade humana derivam importantes consequências. Porque a dignidade humana não depende da fase de desenvolvimento da pessoa e não admite graus, contra ela atenta gravemente o aborto. Porque a dignidade humana não se perde com a doença ou a deficiência, contra ela atenta gravemente a eutanásia. Porque a dignidade humana não se perde com a prática de crimes, contra ela atenta gravemente a pena de morte. Porque a dignidade humana não é compatível com alguma forma de instrumentalização da pessoa, contra ela atentam gravemente o tráfico de pessoas, o trabalho em condições degradantes, a prostituição e a maternidade de substituição.
Dicastério para a Doutrina da Fé
O documento, que demorou cinco anos a ser ser elab(...)
Um dos aspetos desta declaração que mais tem sido salientado é o de que ela apresenta a visão da Doutrina Social da Igreja como um conjunto global, completo e coerente de princípios e suas concretizações. A mencionada noção de dignidade humana leva a que ela deva ser defendida, de forma global e coerente, em todas as fases da vida e em todas as circunstâncias. Esta não é, certamente uma novidade desta declaração; ela apenas recapitula o que decorre em especial dos ensinamentos dos últimos Papas (São João Paulo II, Bento XVI e Francisco) e da coerência de todos esses ensinamentos.
Sublinharam este aspeto, entre outros, o jornalista italiano Andrea Tornielli, um dos responsáveis da comunicação do Vaticano, e o bispo norte-americano Robert Barron, talvez o mais mediático dos bispos, com muitos seguidores no seu país e no mundo inteiro. Afirmou o primeiro que esta declaração «vem superar a dicotomia que existe entre quem se centra exclusivamente na defesa da vida nascente ou moribunda, esquecendo outros atentados, e vice-versa, quem se concentra somente na defesa dos pobres, esquecendo que a vida deve ser defendida desde a conceção até à sua conclusão natural» (in www.vaticanews.va, 8/4/2024). Afirmou o segundo que «a doutrina social católica transcende a divisão esquerda/direita da política ocidental.; veja-se como enfatiza temas importantes para a esquerda – migrações, pobreza, oposição à guerra, violência contra a mulher – e uma série de temas importantes para a direita – aborto, eutanásia, ideologia de género» (in www.foxnews.com, 9/4/2024).
Na verdade, há que salientar esta visão completa da Doutrina Social da Igreja, sem a reduzir àquilo a que nos Estados Unidos se designa como 'single issues' (questões isoladas), mas sem esquecer nenhuma dessas questões, sobretudos as mais importantes. Há que defender a vida humana em todas as suas fases, desde a conceção, na infância, na juventude, na idade adulta, na velhice, e até à more natural. Há que combater todos os atentados contra a dignidade humana, quer quando esse combate corresponde ao “ar do tempo” e à cultura dominante, e assim nos juntamos a um coro de muitas vozes, quer quando esse combate vai “contra a corrente” dessa cultura e somos vozes que «clamam no deserto» (como se tem visto recentemente entre nós a propósito de questões que se pretendem definitivamente canceladas).
Nalgumas questões seremos apontados como “conservadores”, noutras como “progressistas”. Esta visão completa afasta os riscos de parcialidade e de polarização que as divisões entre esquerda e direita acarretam, dentro e fora da Igreja, e que parecem acentuar-se cada vez mais.
Trata-se de uma questão de coerência, mas também de maior eficácia. A defesa da vida e da família depende da formação das consciências, mas em grande medida também de políticas de justiça social ambiciosas. Isolar as questões não é coerente e não é eficaz.
É natural que dentro da Igreja haja pessoas e grupos mais sensíveis a uma ou outra das várias causas de defesa da dignidade humana, mas sem nunca esquecer as outras causas e sem nunca quebrar o diálogo fraterno com outras pessoas e grupos mais sensíveis a essas outras causas.
Penso que este é um dos principais aspetos que a declaração Dignitas Infinita nos vem recordar e que merece atenção.