25 nov, 2024 • Pedro Vaz Patto
“Genocídio!”. É a frequente e mais grave das acusações que se têm ouvido em escritos e manifestação contra os ataques das forças israelitas em Gaza, os quais já provocaram mais de 40 mil vítimas civis.
Mais recentemente, foi divulgado um escrito do Papa Francisco onde ele coloca a hipótese (sem o afirmar perentoriamente, ao contrário do também já se tem dito) de assim dever ser caracterizada tal ação do governo de Israel, sugerindo uma investigação para apurar esse facto.
Mas será correta tal qualificação à luz do Direito Penal Internacional?
Não é só a precisão dos conceitos e o rigor jurídico que estão em causa. Não pode ignorar-se a particular sensibilidade do povo judeu (que foi vítima do Holocausto, o genocídio que esteva na base da definição desse crime no direito internacional e, sucessivamente, no direito penal de muitos Estados, incluindo Portugal), quando se alude a tal conceito.
Receiam muitos representantes desse povo, de variadas correntes políticas, a perda da singularidade do Holocausto na memória da humanidade quando o conceito de genocídio se banaliza.
Há que ter isso em conta mesmo quando se denuncia com toda a veemência a tragédia que atinge hoje o povo palestiniano. Se isso não for tido em conta, muito mais difícil será o diálogo entre os povos judeu e palestiniano.
O Tribunal Penal Internacional diz ter evidências (...)
Reconhecer a singularidade do Holocausto não significa deixar de reconhecer outros genocídios ocorridos no passado, como o que foi perpetrado pelo governo turco contra o povo arménio em 1915 (reconhecimento já efetuado em vários parlamentos nacionais e no Parlamento Europeu).
Só dessa forma se previne a ocorrência de outros genocídios no futuro. Mas o rigor dos conceitos leva a que, por exemplo, Anne Applebaum no seu livro Fome Vermelha – A Guerra de Estaline contra a Ucrânia (Bertrand Editora 2022, pgs. 245 e segs), não qualifique desse modo o Holodomor, a morte intencional por inanição de milhares de ucranianos pelo governo estalinista em 1932, um massacre que com grande ênfase ela denuncia sem minimizar a sua gravidade.
De acordo com a definição do Direito Internacional, que consta do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e transposta para o Direito português no artigo 8.º da Lei n.º 31/2004, de 2 de julho, o genocídio supõe a “intenção de destruir, no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
Ora, por muito graves que sejam (e são, na verdade) as consequências dos ataques israelitas em Gaza, não será correto dizer que elas revelam uma intenção de destruição do povo palestiniano, no seu todo ou em parte.
O que revelam (e isso se depreende também das próprias declarações de responsáveis do governo de Israel) é uma intenção firme e inequívoca de destruir uma organização terrorista, o Hamas.
Os massacres surgem porque para atingir tal fim não se olha a meios, nada detém esse propósito, nem mesmo a vida de milhares de civis inocentes, incluindo crianças. E é neste “não olhar a meios” de uma suposta defesa que se torna desproporcional, ou deixa mesmo de ser defesa, que reside a imoralidade e a natureza criminosa dessa ação.
Rejeitar a qualificação da ação do governo de Israel em Gaza como crime de genocídio não significa minimizar a sua gravidade. A morte deliberada de civis inocentes (mesmo que seja a pretexto do combate a uma organização terrorista) pode configurar a prática de crimes de guerra (também previstos no direito penal humanitário internacional e no artigo 10.º da referida Lei n.º 31/2004) ou (sendo sistemática) de crimes contra a humanidade (estes também previstos no direito penal humanitário e no artigo 9.º dessa Lei). Foi essa a qualificação dada à ação do governo de Israel em Gaza pelo Tribunal Penal Internacional. Mas falar a este respeito em “genocídio” não é rigoroso e, para além disso, contribui ainda mais para a crispação que torna ainda mais difícil o diálogo e a busca de caminhos para a paz.