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Os Jovens e a Eutanásia. “Já temos lei. O que fazemos para minorar o sofrimento?”

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Os Jovens e a Eutanásia. “Já temos lei. O que fazemos para minorar o sofrimento?”

02 jun, 2023 • Ângela Roque


Numa conversa que junta três jovens médicos e um jurista analisa-se o diploma e como pode ser aplicado na atual situação de penúria do SNS e sem oferta capaz em cuidados paliativos, que nem sequer são uma área obrigatória na formação.

Depois de avanços e recuos – com dois vetos presidenciais e dois chumbos pelo Tribunal Constitucional - o diploma que legaliza a morte medicamente assistida foi aprovado pelo parlamento a 12 de maio, promulgado pelo presidente e já publicado em Diário da República. Com os prazos que têm de ser cumpridos para a sua regulamentação, só deverá entrar em vigor já no outono.

Será que a nova lei abre um novo capítulo na forma como entendemos a vida e a morte? É, como alguns defendem, uma mudança civilizacional? “Apetece-me responder que não. Na verdade, esta lei está em linha com os ares dos tempos, é bastante coerente e, no limite, até peca por tardia, porque vivemos um tempo da soberania do indivíduo e da sua vontade”, afirma Vasco Ressano Garcia, de 26 anos.

Formado em direito, com mestrado em ciência política, foi até há pouco tempo assistente no Parlamento Europeu. Vive atualmente vive em Londres, mas acompanhou o processo legislativo com atenção. Diz que “o tema foi muito falado, mas não sei se foi muito discutido”, e duvida que a aprovação do diploma seja motivo para mais reflexão. “Pelo contrário, desconfio e prevejo que seja o fim do debate, que a partir de agora se discuta só num sentido, que é abrir mais a lei. E quem quiser voltar atrás vai ser visto como retrógrado, completamente fora do seu tempo”.

“No critério da vontade ninguém mexe, é o centro desta lei, e pelos vistos, os legisladores estavam bastante confortáveis e aprovaram quatro versões diferentes. Quem aprova quatro, aprova mais quatro ou mais oito”. Os critérios “hoje são uns, amanhã podem ser outros” e “se o que interessa é a liberdade e autonomia”, então, diz, isso acabará por fazer alargar a lei a “outros sofrimentos ou patologias”.

Vasco escreve no Ponto SJ, o portal dos Jesuítas, e em 2020 foi um dos 1878 jovens, dos 16 aos 30 anos, que assinaram uma Carta Aberta a pedir aos deputados que fossem prudentes, prevenindo “o que não se pode remediar”. Em sua opinião, quem legislou tentou “blindar ao máximo a lei, e valorizo isso”, mas nada evita que em nome da liberdade individual se venha a alargar as situações “elegíveis” para se recorrer à morte medicamente assistida.

“Sabemos que as leis existem, mas os tribunais também existem. Porquê? Porque as leis não funcionam sempre e, portanto, ou acreditamos que estamos perante uma lei que é diferente de todas as outras que alguma vez produzimos, ou então acreditamos que esta lei vai ser mal aplicada. E o que é que acontece se fôr mal aplicada? Alguém foi morto”.

“Não posso classificar esta lei como equilibrada”

Beatriz Ferreira, de 26 anos, tirou medicina na Universidade Nova de Lisboa. Está a fazer a especialização em medicina interna no Hospital de São Francisco Xavier, e tem muitas dúvidas sobre a lei e o que ela impõe.

“Posicionou-me contra a eutanásia e, desse modo, não posso classificar esta lei como equilibrada”, e põe em causa que seja um ato médico. “Dar uma injeção letal, não é preciso ser um médico a fazer. Nós não andámos a aprender na faculdade quantos gramas de pentobarbital de sódio provoca uma morte rápida”, afirma.

“O que esta lei prevê são as condições em que a morte medicamente assistida não é punível. No fundo, o que se está a fazer aqui é classificar um subgrupo de pessoas como legalmente elegíveis para serem mortas por um médico”. Diz que não se trata de “desligar máquinas, ou tirar sondas de alimentação”, e espera que a classe reflita sobre o que se espera dela, porque “a comunidade médica é contra a obstinação terapêutica, mas acho que ainda há um longo caminho a percorrer para nós, médicos, sobre o ponto em que se deve parar”, e que pode conduzir ao desespero.

Parece-lhe “irrealista” o artigo da lei que determina que ao doente que pede a eutanásia “é sempre garantido, querendo, o acesso a cuidados paliativos”. “Onde é que vão entrar aqui os cuidados paliativos? É nos últimos dois meses? No último mês? Há tempo para se estabelecer uma relação terapêutica neste tempo?”, questiona.

Esta jovem médica lembra que “hoje em dia há menos familiaridade com a morte, que ocorre nos hospitais, é mais assética”. E que não é por acaso que o suicídio assistido começou por ser legalizado os países ocidentais ricos, onde as pessoas “querem estar ao volante da própria vida em tudo, incluindo o seu fim”.

Mas, em Portugal, qual é a realidade? “O que vemos nas enfermarias de medicina interna são cada vez mais pessoas, chamadas ‘casos sociais’ de uma maneira muito simplista. Quando é o momento da alta, a família não tem capacidade para as receber”. Muitas estão sós, não são visitadas, o que a leva a deixar um alerta: “eutanásia é um indício de abandono. É um indicador de que as pessoas estão sozinhas e lhes falta a única coisa que torna suportável o sofrimento, que é a visita”.

Cuidados paliativos: faltam camas, médicos e formação

Catarina Faria, 32 anos, é natural do Porto, onde se formou em medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. É médica da Equipa Intra-hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos do Amadora Sintra, e integra a Comissão de Ética deste Hospital. Confirma as graves necessidades nesta área.

“Não há nenhuma equipa intra-hospitalar de cuidados paliativos que cumpra o que está recomendado pela Associação Nacional de Cuidados Paliativos quanto ao número de camas, que determina o número de profissionais. Na equipa onde trabalho devíamos ter entre seis a oito médicos a tempo inteiro e somos três. Do ponto de vista de enfermagem, o défice ainda é superior, e do ponto de vista da psicologia, que seja do meu conhecimento não há nenhuma equipa que tenha sequer uma psicóloga a tempo inteiro”.

Alerta, ainda, para a falta de interesse por esta área começa logo na formação. “Não existe nenhuma faculdade de medicina no país que tenha como obrigatória a disciplina de cuidados paliativos e não existe nenhum colégio de especialidade que também defina que é obrigatório o interno fazer um estágio na área da medicina paliativa”.

“Se eu quiser não tenho de fazer um único mês de medicina paliativa e as necessidades paliativas são gritantes. Neste momento não somos suficientes sequer para abordar todos os doentes no último mês de vida”, revela ainda.

Lembrando que não se sabe ainda qual irá ser o “volume de pedidos” de doentes para serem eutanasiados, Catarina alerta para uma desigualdade que se pode abrir. “Se pela lei é obrigatório que esta pessoa que pede a eutanásia tenha acesso a paliativos, será que estamos a respeitar o princípio da justiça distributiva, se nos conseguimos dedicar a quem pede eutanásia e não nos conseguimos dedicar aos outros que passam por um sofrimento que também pode ser intolerável, mas que não pedem para morrer - por convicção, ou pelo que fôr? Não sei responder. Esta pergunta fica para refletir”.

Catarina Faria lembra que “não é só o SNS que está na penúria, é o país, a pobreza aumentou significativamente e uma das principais causas para haver pedidos de morte antecipada é o sofrimento social. Eu trabalho numa área em que é particularmente gritante aquilo que o sofrimento social pode condicionar na vida das pessoas”.

“É claro que eu questiono, o que é que nós, enquanto sociedade, estamos a fazer para nos reorganizarmos, para dar resposta a esse tipo de situações. Sim senhor, foi feita uma reflexão no Parlamento que foi eleito pelos portugueses, considera-se que o país está no caminho de ter esta discussão e agora aprova-se esta lei. Temos lei, mas o que é que estamos a fazer, em paralelo, para evitar que o sofrimento que possa ser debelado não o esteja a ser, porque nós não estamos a tomar medidas para isso?”.

“Talvez esta lei e o debate deste tema leve as pessoas a pensarem mais sobre o sofrimento e a ver que a medicina tem de ir atrás das necessidades dos doentes e, neste momento, as necessidades dos doentes vão muito mais além do que a medicina baseada na evidência, o cumprimento das Guide lines”

“Nos cuidados paliativos temos um conceito que é o de dor total. Não é só a parte física. Existe uma componente emocional, uma componente social e uma componente existencial. E se nós não conseguirmos otimizar todas elas, nunca vamos conseguir aliviar o sofrimento do doente. Faz um bocadinho pensar na naquela metáfora uma pessoa que está num prédio a arder e que não tem escada de incêndio, se calhar vai-se atirar pela janela”.

“Sou a favor. Tem de haver intervenção médica neste processo”

Edgar Simões, de 28 anos, é médico interno de saúde pública no agrupamento de centros de saúde de Loures e Odivelas. Diz-se “favorável à despenalização da eutanásia”, mas reconhece que a lei surge numa altura em que “há deficiências óbvias no SNS, e talvez os cuidados paliativos sejam uma das áreas em que se faz sentir mais”.

Mas, em sua opinião, haver essas carências não justifica que se negue “um direito que deve ser consagrado, e que para ser consagrado envolve uma alteração de política criminal, que consiste em deixarmos de sancionar o médico por assistir na morte de uma pessoa”. E acrescenta “há pessoas que têm acesso a esses cuidados paliativos e que mesmo assim escolhem a eutanásia porque têm acesso a ela”.

Este jovem médico considera a lei “equilibrada” ao definir que “tem de haver intervenção médica neste processo”, e que “perante um conjunto de condições muito concretas e que causam sofrimento muito grave, é admissível o Estado auxiliar”. Mas concorda que “deve sempre haver direito à objeção de consciência”, que o diploma também prevê.

Em relação ao currículo médico, reconhece a necessidade dos cursos de medicina darem mais atenção às questões éticas e aos cuidados paliativos. “Eu e a Beatriz andámos na mesma faculdade. A questão ética foi abordada, os desafios éticos foram abordados, havia unidades curriculares do currículo obrigatório em que isso foi falado, talvez não com a profundidade que o assunto merece. É a minha opinião. Em relação a cuidados paliativos, nunca tive nenhuma cadeira. É a verdade. Se seria necessário? Acho que sim”.

Perguntas ao Papa

Como em todos os episódios do ‘Somar Ideias’, que tem a JMJ como pano de fundo, os convidados foram desafiados a fazer uma pergunta ao Papa Francisco.

Católica empenhada, Beatriz Ferreira perguntaria a Francisco “o que é que recebe de olhar para Jesus?”.

Edgar Simões diz que faria uma “pergunta honesta. Cresci à volta da Igreja católica - acho que sou um caso perdido – mas, os números mostram que há muitos jovens nessa trajetória, e perguntaria que estratégias encontra para reverter isso?”.

Lembrando o “sentido de humor marcante” do Papa, Vasco Ressano Garcia gostava de saber “como é que mantém um olhar tão positivo sobre a humanidade, ele que tem acesso a tanto do pior que há na Igreja e no mundo. Como é que mantém essa força e visão boa do homem e da mulher”.

Catarina Faria perguntaria “se perante situações de sofrimento, em que foi tudo - possível e impossível - otimizado, e aquele ser humano continua a dizer que está sob um sofrimento intolerável, tem poucas semanas de vida e desejava que isso fosse abreviado, se algum dia aos olhos de Deus isso pode ser visto como um ato compassivo”.

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