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Entrevista

Guilherme d'Oliveira Martins: "Riscos de corrupção nas privatizações são muito grandes"

25 mar, 2015 • Marina Pimentel (Renascença) e São José Almeida (Público). Vídeos: Joana Bourgard (Renascença)


Presidente do Tribunal de Contas está "muito vigilante" em relação à privatização da TAP. Em entrevista à Renascença e ao "Público", diz que a "grande dificuldade" nos crimes ligados à corrupção é produzir prova.

Guilherme d'Oliveira Martins diz que se "perdeu tempo" na criação de legislação sobre enriquecimento ilícito ou injustificado, mas afirma que é preciso preservar o princípio de presunção de inocência e não inverter o ónus da prova.

Em entrevista à Renascença e ao jornal "Público", o presidente do Tribunal de Contas (TdC) e do Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC) fala sobre o caso Sócrates e as eleições presidenciais. Defende que há um caminho longo que foi feito no combate à corrupção, mas assume-se "muito vigilante" face ao caso BES e à privatização da TAP.

A Assembleia deve aprovar uma lei sobre o enriquecimento injustificado. O que pensa sobre a criação deste novo tipo penal?
Pode ser positiva, até porque decorre da convenção da ONU relativamente ao combate à corrupção. A criação desta figura terá de obedecer a critérios de constitucionalidade. Em primeiro lugar, a preservação do princípio de presunção de inocência e não inversão do ónus da prova. Este tema da inversão do ónus da prova já foi resolvido por outras ordens jurídicas, designadamente em Hong Kong, onde há a figura do enriquecimento injustificado, considerada como constitucional e que tem dado lugar a condenações.

Em Espanha já foi?
Não. Nenhuma ordem europeia adoptou, sem mais, uma figura de enriquecimento injustificado.

Admite o argumento de que a presunção de inocência não é um direito absoluto?
É um princípio geral do direito e é por isso que tenho tido a preocupação de dizer que é possível introduzir esta figura de acordo com a Constituição.

Esta legislação não tarda?
Perdeu-se tempo, uma vez que sabemos exactamente como contornar esta dificuldade, este princípio geral do direito. Não é pensável introduzir qualquer alteração constitucional que ponha em causa este princípio, está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No Parlamento eu disse que a multiplicação de figuras criminais relativamente a esta matéria não é positiva, porque, relativamente aos crimes ligados à corrupção, a grande dificuldade é a produção de prova. Ouça-se o Ministério Público, veja-se a dificuldade que tem em constituir matéria de prova, fazer acusação e fazer condenar. Esta é que é, no fundo, a grande questão. Estou muito à vontade em dizê-lo porque na jurisdição financeira a produção de prova não se faz como na penal. Na financeira a produção de prova é feita da seguinte maneira: quem tem a seu cargo dinheiro ou valores públicos é que tem o ónus de provar, não é quem acusa.

Há uma inversão?
Não há violação do princípio geral do direito. Aqui há uma outra questão: considerar quem tem a seu cargo valores públicos como fiel depositário.

A situação é diversa, mas a ministra da Justiça tem argumentado com essa excepção.
Naturalmente. Fique muito claro o que reafirmo: é preciso percebermos que há que transpor para a ordem jurídica portuguesa esta orientação que consta da convenção da ONU. Agora, tem é que ser de acordo com a Constituição.

Nos projectos em discussão, há risco de inconstitucionalidade?
Sempre que alargarmos o âmbito desta figura a privados e a quem não tenha a seu cargo valores públicos, o risco de inconstitucionalidade aumenta. Basta ver a que a última apreciação do TC foi por unanimidade, não havia dúvidas. O que estou a dizer já disse e direi. Como sabem eu nasci politicamente no Parlamento, é o coração da democracia. E toda a gente sabe o meu pensamento: é possível, com trabalho, criar a figura do enriquecimento ilícito.

Há três anos, quando a troika chegou, o senhor defendeu que era preciso fazer um acompanhamento exaustivo dos riscos de corrupção nas privatizações. Sente que esteva a pregar no deserto?
O balanço feito quando chegamos ao termo do programa de resgate relativamente à intervenção do TdC, em especial pelo FMI, foi positivo. Dos vários memorandos, só o português é que dava ao TdC um papel significativo, até em virtude da própria natureza do TdC em Portugal. Não é por acaso que quer em Espanha, quer em França, no debate sobre o futuro dos tribunais de contas, se aponta o modelo português como o preferível. Porquê? Porque temos uma jurisdição completa, somos integrados no poder judicial e as nossas decisões são sujeitas todas a recurso e o Ministério Público está presente em todas as secções. Não era assim quando eu cheguei, mas hoje acontece. Isso significa que em relação ao peso da dívida pública no PIB, o papel que o TdC tem desempenhado tem sido extremamente importante. Designadamente preservámos a figura da fiscalização prévia. E tem sido extraordinariamente importante. Recordo-lhe que relativamente às PPP não houve outra entidade ou instituição público-privada que tivesse apresentado valores tão rigorosos.

Como vê a privatização da TAP?
A questão fundamental neste momento é garantir que os interesses em presença são salvaguardados. Há várias hipóteses, estamos a acompanhar, mas sempre com esta preocupação. Devo dizer que da parte do senhor ministro da Economia tem havido um especial cuidado não apenas de fazer chegar ao tribunal as informações através das comissões de acompanhamento, mas ele próprio ter um contacto directo com o tribunal para nos dar conta do que se está a passar. Há a consciência de que o interesse nacional tem de ser preservado. Esse aspecto é particularmente importante. Não é o problema apenas de preservar o "hub" de Lisboa, é preservar o futuro. Para não termos novas surpresas como tivemos infelizmente no caso da PT.

O risco de corrupção nas privatizações é mínimo?
As recomendações têm sido cumpridas, mas temos de estar com uma atenção redobrada. Os riscos são muito grandes. O facto de estarem no terreno mecanismos de prevenção não significa que o risco não ocorra, quando o risco é extremamente elevado e o interesse nacional está em causa. Basta olharmos em volta e vermos as preocupações da sociedade portuguesa, em relação a uma companhia como é a companhia aérea de bandeira.

O risco da TAP é maior? Há negócios de maior risco?
Não podemos ficar e não ficaremos descansados apenas porque existem os mecanismos de prevenção. Não. Temos de estar muito atentos. Não sabemos em concreto ainda o principal relativamente a esta operação. Não é o momento de saber. No momento próprio, teremos oportunidade de dizer, se for caso disso, quais são as nossas preocupações. A TAP precisa de investimentos. Indiscutivelmente, não podemos esquecer o que aconteceu algumas décadas atrás com companhias de bandeira como a Sabena e a Swissair e isso temos de prevenir. Felizmente que temos tido da parte da TAP uma administração cuidadosa, que tem em atenção o mundo da língua portuguesa. Temos de estar muito atentos. Não interprete o que eu disse com agora estamos satisfeitos.

Está vigilante?
Muito vigilante.

Foto: Joana Bourgard/RR

Sente que depois da crise e de todos estes casos, os portugueses estão menos tolerantes em relação ao fenómeno? E ainda assim temos tão poucas condenações. O Conselho de Prevenção da Corrupção revelou que menos de 3% dos processos de corrupção relativos a 2014 resultaram em condenação. É muito frustrante?
A razão fundamental, nós já a vimos. Tem a ver com a dificuldade de prova relativamente a este crime. Não podemos por isso multiplicar as figuras. Não se pense que a nossa consciência fica tranquilizada se criarmos mais não sei quantos crimes ligados à corrupção por já há um número suficiente de figuras criminais relativamente à corrupção. O Ministério Público tem melhorado a sua informação relativamente a estas matérias em acusações. E depois os tribunais relativamente às condenações. Estamos satisfeitos? Não. Por isso é indispensável aprofundar a lei. Por isso quando me perguntaram ‘Está contra a lei do enriquecimento ilícito ou ilegítimo?’, eu disse 'Não estou'. É preciso é que uma lei qualquer, uma figura qualquer seja efectiva e não se limite a sossegar as nossas consciências.

As instituições têm chamado a atenção para a inexistência de estratégia nacional de combate à corrupção?
O GRECO [Grupo do Conselho da Europa Contra a Corrupção], sim. É por isso que temos tido um contacto permanente com o GRECO e nesse sentido devo dizer que tem havido uma preocupação muito grande. Relativamente ao GRECO, está a fazer-se um caminho em relação a uma matéria que nos tem preocupado, mas em que nós, CPC, temos tido um grande cuidado porque não é matéria da nossa esfera, é do TC: é o financiamento dos partidos. Há uma lacuna que tem de ser preenchida: as campanhas internas dos partidos que não estão sujeitas a controlo.

Houve um vazio absoluto na campanha das primárias do PS.
Que foi colmatado voluntariamente por muita gente das instituições envolvidas.

Inscreveram as despesas nas contas do partido.
Esse aspecto é importante. Estou a pôr a foice em seara alheia porque tenho conversado muito com o sr. Presidente do TC.

Não era altura de os deputados aprovarem uma regra fixas de apresentação de contas?
Há um caminho que foi feito. E eu devo dizer que o trabalho feito pela Entidade de Contas é um trabalho notável e tem sido muito bem prosseguido.

Mas é limitado pela lei.
Certamente que sim, mas devo fazer este elogio, até porque muitas vezes o TdC tem dado apoio técnico.

Os deputados deveriam melhorar as regras da contabilidade dos seus próprios partidos?
Certamente que sim, se aperfeiçoarmos os sistemas. Ainda há dias punha-se a questão de saber se não seria necessário aperfeiçoar as declarações no TC dos titulares de cargos políticos. Designadamente num item que não está lá mas deve estar, que é o item a dizer se há dívidas aos Estado. Lembramo-nos das sessões do Congresso dos EUA e é uma pergunta recorrente. Tem que haver transparência. A transparência é algo extremamente importante.

Como vê a lei de incompatibilidades apresentada pelo PS que está agora em comissão?
Tenho sempre muito cuidado relativamente a legislação sobre incompatibilidades, até porque é indispensável que possamos ter um sistema não tanto formalista ou rígido, mas que seja transparente. Eu gosto muito do sistema britânico, que é um sistema de declaração de interesses.

Como vê a imagem que a população tem da política?
Direi pela positiva que o Estado, a função política, a defesa e a salvaguarda dos interesses gerais têm de atrair os melhores. E não favorecer a mediocridade. Isto não é fácil. Mas temos de recusar qualquer fatalismo de que as coisas não devem evoluir no sentido de credibilização e de prestígio. Precisamos de prestígio e dignidade para o Estado e para a política.

Com a descoberta de tantos casos envolvendo a máquina do Estado, sente que o seu papel está a falhar?
Não. Por uma razão simples: o TdC é uma instituição que tem funcionado e que existe não para fazer a apreciação de decisões políticas, mas para garantir que os recursos públicos são utilizados da melhor maneira. Nós não julgamos decisões políticas. Vamos verificar em primeiro lugar se a lei foi cumprida e em segundo lugar se houve eficiência na utilização dos recursos.

O Ministério Público descobriu recentemente uma série de casos de alegada corrupção, envolvendo quadros dirigentes do Estado. A própria procuradora-geral da República falou, nesta série de entrevistas, numa "rede de corrupção" que usa a máquina do Estado. É também a sua convicção?
Há algo muito importante que foi feito, a consagração dos planos de prevenção de risco de corrupção e infracções conexas, de acordo com as recomendações internacionais. Mas mais importante do que isso, [é] garantir que esses planos funcionem. A transparência é algo muito importante e não se confunde com "voyeurismo". É saber exactamente como os dinheiros públicos estão a ser utilizados. A colegialidade é extremamente importante e a circulação, nós não podemos manter as mesmas pessoas no relacionamento com o público, por exemplo, relativamente a matérias tão importantes como as tributárias.

O Conselho de Prevenção da Corrupção devia ter outro perfil?
Pelo contrário. Hoje numa auditoria feita pelo TdC ou pela IGF a primeira pergunta é esta: tem cumprido as recomendações do CPC. Os planos surgiram em função de uma mera recomendação. Hoje a legislação, designadamente em matéria de poder local, consagra expressamente os planos e a acção do Conselho.

O caso BES indicia corrupção?
Não posso pronunciar-me sobre o caso BES respondendo directamente. Mas pronuncio-me no fundamental. O TdC tem jurisdição sobe o fundo de resolução. Essa competência vai ser exercida. Há uma articulação com o Banco de Portugal, o BP tem a supervisão, o TdC tem a jurisdição. Estamos preocupados com esta questão por uma razão simples. É que, neste momento, é indispensável salvaguardar que os recursos públicos significativamente empregues no Novo Banco e neste processo sejam recuperados, sem prejuízo para os cidadãos contribuintes. Estamos a ser pioneiros, mas o TdC tem provas dadas. Recordo que os elementos fundamentais com que o Parlamento lida, relativamente ao BPN ou ao BPP são do TdC, que têm sido reconhecido por todos como fiáveis.

Como tem visto a comissão de inquérito? Concorda que os deputados pela primeira vez despiram a camisola partidária?
Põe-me uma questão sobre que reflicto há muito: o papel importante das comissões de inquérito no Parlamento e eu recordo aqui a experiência britânica. A experiência britânica leva a que este tipo de comissões tenha de decidir quase por unanimidade, por amplas maiorias. Para quê? Se há uma minoria que de algum modo vota uma conclusão, esta fica fragilizada. É por isso que a Comissão de Contas dos Comuns é constituída paritariamente. E quando diz que é bom que as pessoas dispam as suas camisolas partidárias naturalmente que essa é uma tendência que vemos com muito agrado. Os parlamentos dignificam-se através de decisões que sejam inatacáveis.

Andou preocupado com a administração tributária. Recentemente tivemos notícia da existência de uma "lista VIP" de contribuintes. Como comenta?
Direi aquilo que é substantivo. Felizmente o CPC nesta matéria tributária tem tido uma atenção muito especial. Designadamente em relação, por exemplo, à utilização abusiva de acessos aos meios informáticos. Temo tido um acompanhamento muito, muito especial. Só não lhe falo deste tema porque eu não conheço, não sei exactamente os seus contornos.

Mas se houvesse uma lista?
Não me vou pronunciar sobre a lista, nem sei o que é isso. Agora posso dizer-lhe o seguinte. Nós consideramos que os acessos abusivos relativamente à informação tributária não podem ser tolerados.

Isso vale para toda a gente?
Com certeza. Há um princípio que é o artigo 13 da Constituição que salvaguarda a igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
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