22 jun, 2024 - 19:15 • Hugo Tavares da Silva
Conhece os centímetros todos, todos da baliza e ignorou-a. Cristiano estava isolado, nos olhos de Bayindir e de todos os recordes que teimam em persegui-lo, mas ele decidiu esquecer tudo e tocou para o lado. Bruno Fernandes meteu a bola na baliza deserta, mas toda a gente foi celebrar com o capitão, o verdadeiro capitão que descobriu o valor da generosidade e da outra grandeza, aquela que aceita que outros também sejam lambidos pelos holofotes.
Ainda com genica para sentar defesas como Bardakci, com uma bandeirola de canto como testemunha privilegiada, Cristiano Ronaldo está a oferecer-nos a versão mais solidária que alguma vez vimos, como se tivesse ganho uma batalha contra o lado errado do ego. Falta o golo, mas a atitude vai trazer um vento que lhe vai devolver algo. Costuma ser assim.
Portugal bateu a boa Turquia (3-0), que esta tarde em Dortmund vergou contra um grupo mais ligado e competente. Roberto Martínez meteu João Palhinha por Diogo Dalot e ganharam todos: os equilíbrios necessários e os desequilíbrios desejáveis a atacar pelas alas, com Nuno Mendes e João Cancelo a voarem. Pepe foi imperial. Antes do jogo, tanto ele como Cristiano estiveram à conversa com Altintop, o ex-futebolista que agora é diretor técnico da federação turca. Tem a idade de Pepe.
Foi um 4-3-3 malandro, este de Portugal (que chegou a defender com linha de 5 quando Leão baixou). É que continuaram a notar-se dinâmicas do lateral por dentro ou com o agora deliberado ‘6’ a aproximar-se dos centrais. Do lado da Turquia, Vincenzo Montella, senhor de uma bela canhota e que teve de mostrar a credencial para entrar no estádio (sim, foi barrado), fez quatro alterações no 11, sendo a mais sonante a saída de Arda Guller, o artista imberbe do Real Madrid que entraria aos 70’ (o treinador italiano foi acusado de pensar na última jornada).
A Turquia foi atrevida nos primeiros minutos (sobretudo pela esquerda), com Akgun, Akturkoglu (falhou um golo cantado no início) e sobretudo Kadioglu e Yilmaz a magicarem coisas interessantes com a bola nos pés. Pepe ia controlando os movimentos da rapaziada de branco, insuflados pelos milhares de turcos no estádio do Dortmund. Os portugueses foram tomando conta da bola. A paciência e a qualidade ajudaram.
O golo de Portugal chegou aos 21’, por Bernardo Silva (surgiu a alto nível e com a filhota na tribuna). O canhoto aproveitou da melhor maneira uma jogada de Nuno Mendes e do intermitente Rafael Leão (adivinhou que haveria mais espaço). Pouco depois, o trágico 2-0: Cancelo e Cristiano não conectam e o defesa Akaydin tocou para o guarda-redes, estreante no Europeu, que deixou a bola passar… e golo. Os portugueses beneficiam do segundo golo na própria. É o sexto no torneio, com 28 jogos por jogar (o recorde do torneio está em 11 no Euro 2020).
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Diogo Costa também entrou no jogo, com uma super defesa à passagem da meia hora. Os turcos iam perdendo o fio à meada e nós esqueceríamos a cor do equipamento do guarda-redes do FC Porto. Portugal não permitiria partir o jogo e entrar num festival delirante de transições, como notaria no fim Pepe.
“Cristiano Ronaldo, Cristiano Ronaldo”, ouvia de vez em quando o ‘7’ e que justo, pois, mesmo sem marcar, tentaria dar pãozinho a todos os colegas para serem felizes. Admirável.
A segunda parte foi sobretudo sobre controlo. O ritmo serenou, tal como o fogo que saltava das gargantas turcas nas bancadas, e as linhas portuguesas baixaram, já com Rúben Neves e Pedro Neto por Leão e Palhinha, ambos amarelados. Guardou-se a bola quando foi possível, facilitou-se aqui e ali em algumas saídas curtas, mas experimentou-se o contra-ataque e a possibilidade de fazer mossa em campo aberto, tal era o desvario venturoso dos turcos. A seleção portuguesa é uma equipa com capacidade para fazer um jogo total.
Cristiano continuou a tocar para os colegas e o 3-0 chegou por aquele ato altruísta do capitão. Martínez cerrou os punhos e celebrou com vontade. Sabia que, para além do apuramento para os oitavos de final, confirmava ali que tinha um grupo sólido e generoso. Falta saber se saberá desmontar selvas intermináveis de pernas como aconteceu contra a Chéquia...
O desinteresse apoderou-se deste segundo tempo, tanto que uma criança decidiu amealhar uma história para contar aos amigos na escola, invadindo o relvado e sacando uma selfie com Cristiano Ronaldo. Seriam quatro invasões de campo durante os 90 minutos.
Nélson Semedo entrou por João Cancelo (ótima química com o 'cityzen' Bernardo) e, mais perto do apito final, António Silva e João Neves entraram por Pepe e Vitinha (já jogaram 20 futebolistas portugueses). Martínez já pensava no que vinha aí. Assombroso olharmos para o banco e sem uma gota de suor ficaram Diogo Jota, Francisco Conceição, Matheus Nunes, Gonçalo Inácio, João Félix e Gonçalo Ramos.
No fim, ouviram-se Xutos e “A minha casinha”, a tal canção que tocou na apresentação de Cristiano Ronaldo no Real Madrid. Ele juntava as mãos e batia palmas como quem agradece o apoio, sorriu, chegou a cravar os olhos na relva, talvez controlando a tristeza por ainda não ter marcado neste torneio.
Mas, se há coisa que o futebol costuma fazer, é devolver coisas belas a quem belas coisas faz.