18 abr, 2024 - 12:40 • Hugo Tavares da Silva
Há um momento de Carlo Ancelotti, mundialmente famoso e que até é partilhado em câmera lenta, que o define. Num qualquer jogo da Liga dos Campeões, a bola de jogo vai na direção dele e ele não se apoquenta. O velho sábio não retira a mão do bolso. Domina a bola com a parte interna do sapato impecável e reluzente, como fazem os jovens nos seus jogos que prometem uma cacetada implacável com o dedo médio nas orelhas, e ela sobe exatamente o que deve subir.
Depois, toca-lhe com o pé esquerdo e mais uma vez com a coxa direita. A seguir, envia-a, com mais um toque arriscado, agora com o peito do pé, para o seu jogador. A classe é filha deste momento.
Dom Carlo Ancelotti, habituado a esse circo, e os seus rapazes habitualmente de branco classificaram-se, mais uma vez, para a semifinal da Liga dos Campeões, a única prova que faz salivar esta gente que nunca tem fastio, depois de eliminarem o campeão europeu vigente, o Manchester City de Pep Guardiola.
Será a 33.ª vez numa semifinal de Champions para o Real (muito à frente das 21 do Bayern), já vencedor de 14 edições, enquanto o treinador italiano soma a sua 11.ª meia-final no mais especial torneio europeu. Onze. Admirável, certo?
Tudo começou a 17 de setembro de 1997. Este homem, que parece um pai e um tio e um amigo dos futebolistas, estreou-se nesta competição em Praga, contra o Sparta, envergando a farda do Parma. O primeiro 11 de ‘Carletto’ foi Gianluigi Buffon, Zé Maria, Lilian Thuram, Roberto Sensini, Fabio Cannavaro, Antonio Benarrivo, Dino Baggio, Massimo Crippa, Pietro Strada, Hernán Crespo e Enrico Chiesa. Nada mau, hein?
Essa temporada 1997/98 foi também a sua primeira como técnico principal na elite do futebol italiano, depois de ter sido adjunto de Arrigo Sacchi na seleção. Um ano depois, em 98/99, já na Juventus, chegou logo às meias-finais. Caiu apenas contra o Manchester United que faria o tal milagre em Camp Nou.
No Milan, onde espalhou o rumor silencioso de que era um grandíssimo treinador, alcançou quatro semifinais da Champions (2002/03, 2004/05, 2005/06 e 2006/07), trajetórias das quais resultaram dois títulos europeus.
No Chelsea e no PSG não foi além dos quartos de final. Depois, integrou o Real Madrid e passou a ser o arquiteto de uma mística antiga, ganhando a Liga dos Campeões em 2013/14. Nessa primeira passagem no Santiago Bernabéu jogou duas meias-finais, algo que no Bayern Munique sucedeu apenas uma vez (2017/18), perdendo precisamente contra o Real Madrid do seu ex-jogador e ex-adjunto, Zinedine Zidane.
Em Nápoles, na terra de Diego, alcançou os oitavos de final e, depois de uma improvável viagem até Liverpool para treinar o Everton e quem sabe baixar a fasquia, regressou ao Real Madrid. Bom, e aí ‘fiesta’. Foi campeão europeu em 2022 e alcançou as meias-finais nas últimas duas temporadas, sendo que ainda pode chegar à final deste ano, apontando à sua quinta vitória na Champions, um recorde que, com as quatro medalhas de campeão europeu que descansam lá em casa, o próprio já detém. A isso junta triunfos em três Mundiais de Clubes, mais quatro Supertaças Europeias, fora os troféus domésticos.
Foi um regresso ao passado, isto de ver o Real Madrid encolhido à espera que uma equipa de Guardiola tenha poucas ideias no massacre ou que mantenha o inofensivo andebol com os pés. Fez lembrar alguns duelos entre Pep e Mourinho.
Mas Carletto, injustiçado por não seguir as ideologias mais reconhecíveis e as ditaduras do jogo posicional, tem o dom de decidir coisas difíceis com a maior leveza de que há registo. Por isso, recuou as linhas, defendeu, defendeu e defendeu. “Era a única maneira que tínhamos de passar aqui”, admitiu depois do jogo no Etihad.
E disse mais: “Vimos muitas vezes o Real Madrid assim, sacando algo que ninguém pensava que íamos ter. Obviamente, gosto muito quando vejo uma equipa que se sacrifica e que luta, para além da qualidade”. É outro dos méritos do italiano: colocar gente de alto gabarito a correr e a aceitar não ter bola como se fosse um futebolista qualquer.
O plano era quase maquiavélico, julgando as palavras de Ancelotti, um cidadão de 64 anos, natural de Reggiolo. “Os penáltis são uma aposta, mas tinha confiança nos jogadores”, confessou. “Diziam-me que iam ganhar, o Lunin dizia que ia defender [os penáltis]... No final de contas, saiu bem.” Não há coisa mais ancelottiana do que confiar nos jogadores e nos deuses.
Mas o senhor da sobrancelha que denuncia mais conhecimento do que 20 oráculos sabe do que fala. Afinal, e segundo o Transfermarkt, Carlo Ancelotti já fez 201 jogos na Liga dos Campeões, outros 32 na Taça UEFA e Liga Europa, mais seis no Mundial de Clubes, outros seis na Taça Intertoto (facto mencionado apenas para alimentar melancolias coletivas) e outro na Taça Intercontinental.
Este é um homem que, para além de ter sido um belíssimo futebolista, parece conhecer todas as armadilhas e profundezas que vivem debaixo da pele dos jogadores. Antes do City-Real, de quarta-feira à noite, Carlo disse a Guardiola para estar tranquilo que não ia fazer magia. É quase como dizer que vai fazer magia, não é?
Lá está, sabendo que jogadores e deuses estão do seu lado fica mais fácil.