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Ciclismo

Artur Lopes: “Na véspera da inauguração do velódromo de Sangalhos, as lágrimas começaram-me a cair, com medo”

09 out, 2024 - 11:55 • Pedro Castro Alves

Entrevista ao sucessor de José Manuel Constantino no COP. O responsável pela construção do velódromo de Sangalhos, hoje coqueluche nacional, confessa intenções e faz um pedido: "O jardim está aí, há que continuar a regar as flores".

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Passaram quase dois meses, mas a ausência de José Manuel Constantino continua a fazer-se sentir dentro da sede do Comité Olímpico de Portugal. A falta do antigo presidente torna-se mais marcante agora que os dias são mais calmos, com o fim dos Jogos de Paris e da euforia das medalhas conquistadas.

Depois do falecimento do presidente, em agosto, Artur Lopes é o homem escolhido para comandar o barco até às eleições que ditarão o fim do comando desta direção. Na primeira entrevista no cargo, o antigo presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo fala abertamente com a Renascença sobre o passado, o presente e o futuro do Comité Olímpico (com algumas críticas ao poder político).

O objetivo é continuar o trabalho de Constantino até março, dando seguimento a “uma herança extremamente bela” deixada pelo anterior presidente e amigo, com quem partilhou 12 anos de trabalho no COP.

A idade impede o dirigente de 78 anos de ser candidato. Ao fim de 24 anos de vice-presidência, chegou o momento de dizer adeus e tornar-se apenas um amigo do olimpismo. Quem vem a seguir? Não sabe, mas tem um único conselho: “Não estraguem, continuem a obra do José Manuel. O jardim está aí, há que continuar a regar as flores”.

Artur Lopes, o grande responsável pela construção do Velódromo Nacional de Sangalhos, aborda ainda a paixão pelo ciclismo de pista e o início de um trabalho que culminou com a conquistas das medalhas de ouro e prata nos Jogos Olímpicos de Paris.

Desde bater às portas de câmaras municipais, à inauguração com lágrimas de medo pelos 14 milhões de euros gastos na obra, até à conversa com Luís Montenegro sobre as próximas medalhas olímpicas que Portugal pode amealhar com “a menina dos seus olhos”.

Futsal nos Jogos Olímpicos, doping no ciclismo e em “todo o desporto de resistência”, falta de apoio aos atletas e um Orçamento do Estado com uma quantia “ridícula” para o desporto são outros temas abordados na primeira entrevista do novo presidente do Comité Olímpico de Portugal.

Assumiu a presidência do COP recentemente, pelas razões que conhecemos. Há eleições em março, em princípio. Daqui até às eleições, qual é a ideia nestes próximos meses, onde já haverá decisões importantes para tomar?
Devo dizer que é muito fácil essa resposta, porque a ideia é seguir o mesmo trajeto de tudo o que estava planeado pelo portador José Manuel Constantino e não fugindo, ou tentando não fugir, daquilo que seriam as suas diretrizes. Quando, aqui ou acolá, houver algumas coisas a decidir, pensarei sempre como normalmente faço: “O que é que o Zé Manuel faria se estivesse aqui?”. E depois tento fazer isso. E, portanto, será uma progressão do comboio que já vinha em andamento e que é preciso mantê-lo nas mesmas linhas até chegar a março e preparar todo o plano eleitoral.

Quais é que são os desafios de um Comité Olímpico, daqui para a frente, sem a liderança do Dr. José Manuel Constantino?
Muitas vezes falávamos, porque éramos amigos, para além de colaborador dele aqui no Comité Olímpico, e ele mesmo dizia-me sempre: “Artur, como tu sabes, insubstituíveis é que não há”. Agora, há pessoas diferentes e, também, pessoas com valor. Presumivelmente, todos os candidatos que se venham a apresentar terão as suas próprias ideias, terão a sua maneira de ser.

Uma coisa eu posso garantir: se por acaso algum me pedir algum conselho, que não vai ser necessário, poderão ter em mente algo que eu acho que deveriam ter, que é pensarem bem e não querer alterar por alterar, não pensem “agora sou eu, vou-me afirmar como tal”, pensem bem em tudo o que está bem feito e não o estraguem, porque há muita coisa bem feita até agora e, portanto, é dar-lhe continuidade.

As coisas estão no bom caminho, temos uma equipa capaz e preparada para levar a bom termo esta obra e, portanto, o conselho que eu posso dar aos vindouros é que continuem a obra do José Manuel. Na política diz-se que há uma pesada herança, aqui não é uma pesada herança, é uma herança extremamente bela e há que conservá-la. O jardim está aí, há que continuar a regar as flores

Seguir para eleições, ser o Artur a pegar nesse legado, não é uma possibilidade?
Não. Se eu não tivesse a idade que tenho... Não o omito, eu tenho 78 anos e, portanto, tenho a noção das capacidades. De saúde, neste momento estou, como costumo dizer, assintomático. Agora, daqui para frente, não sei. Vou fazer 79, com mais quatro anos serão 83 e, quer queira, quer não queira, as células cinzentas já não são o que eram, nem têm a elasticidade que tinham antes. Portanto, acho que deve vir alguém de novo.

Cumpri 24 anos de vice-presidência, no tempo do Vicente Moura e do José Manuel Constantino, acompanhei os dois, 12 anos cada um e acho que já chega, está na altura de me retirar. Depois, o que desejo é que me olhem com alegria, com amizade até, e que abram as portas para eu, de vez em quando, vir aqui beber um café com esta gente e sentir-me bem, mas relaxado.

E, já agora, tem alguém que gostaria de ver avançar para assumir este lugar?
Como é evidente, é uma resposta que não lhe posso dar, nem vou, nem quero. Venha quem vier, seja de que quadrante for, deve continuar a querer agarrar o mundo do desporto pelo desporto, porque o desporto é já em si tão grande, a nível da sociedade, que não pode confundir-se com qualquer coisa que tenha a ver com qualquer corrupção, qualquer partidarização, seja lá com o que for. O mundo do desporto, em si mesmo, é forte demais e deve ser cada vez mais forte, para ser equiparado à cultura ou a outros setores.

Na receção do primeiro-ministro aos atletas olímpicos e paralímpicos, Luís Montenegro revelou a intenção de aumentar em 20% a dotação destinada ao programa olímpico até 2028. Quando é que saberá se isto vai efetivamente acontecer ou não? E, acontecendo, já há uma ideia de como será aplicado este aumento?
Eu gostaria de lhe dar uma resposta, mas não sou capaz. E presumo que alguém de bom senso, e que tenha os pés assentes na terra, também não será capaz de lhe dar essa resposta. Não é por limitação minha. Isso quer dizer muito enquanto intenção, mas não quer dizer nada enquanto realização. Isto é, esses 20% vão incidir em quê? Como? Quando? Para quê? São tudo respostas que nós não sabemos. É um número lançado para o ar, que é positivo e que as pessoas gostaram muito de ouvir.

Eu tive uma reunião há bem pouco tempo com todas as federações e os presidentes das federações estavam todos ufanos [vaidosos]. Bom, é uma afirmação que para nós é muito gratificante, mas o conteúdo dela é que vai ser fundamental para depois responder se é muito positivo, se é assim-assim ou se não é nada. Temos de ver, verificar e aguardar a evolução das coisas. Houve uma alteração no IPDJ, na Secretaria de Estado do Desporto, o ministro também é outro e ainda não sabemos ainda bem as suas ideias. Repare que neste Orçamento do Estado, que está em discussão, já me disseram que a quantia que vai calhar ao desporto é uma coisa ridícula. Não sei se é verdade ou se é mentira, porque ele não está cá fora, mas vamos ver.

Vários atletas têm vindo a pedir mais apoios. Fernando Pimenta tem sido um dos que tem sido mais vocal relativamente a isso. Qual é a posição que o COP relativamente às últimas declarações de atletas?
O COP olha para essas declarações com muita compreensão, mas também com algum desconto, se me é permitido. Nós sabemos que os atletas têm sido apoiados, também todos eles foram unânimes em reconhecer que o Comité Olímpico os apoiou inexcedivelmente, não só em apoios económicos, como também nos apoios logísticos de tudo o que foi necessário para irem aos Jogos e para estarem bem nos jogos. Se há queixas da cama ou da alimentação, todos nós nos queixamos e compreendemos isso perfeitamente.

Não podemos esperar que os atletas, muitas vezes a quente, após uma competição extremamente dura, vão calma e friamente raciocinar e responder de uma maneira tranquila, racional e justa. Às vezes é aquele desabafo do grande atleta, que acontece a todos, do mais mal-educado ao mais bem-educado, do mais racional ao menos racional, do mais emotivo ao menos emotivo. Por isso, há que deixar, tranquila e calmamente, analisar todas as queixas. Há coisas a emendar? Há, com certeza, e é isso que esta casa quer fazer.

A FIFA disse, recentemente, que tem como objetivo ter o futsal e o futebol de praia como modalidades olímpicas no futuro. Qual é a posição do COP relativamente à entrada destas duas modalidades?
Todos nós sabemos que o futebol, enquanto o futebol de onze, é algo que nos Jogos até nem tem muito interesse, porque as questões passam ao lado dos próprios países. Portugal, por exemplo, é fortíssimo no futebol, se quiser pode apresentar sempre uma seleção de futebol para ir disputar a entrada nos Jogos Olímpicos e depois o resultado dos Jogos Olímpicos, a disputar as medalhas, mas, de facto, os grandes países não têm interesse em ir, não parece ser uma mais-valia para a própria modalidade.

O futsal, que pertence ao futebol, já foi lembrado por anteriores direções do Comité Olímpico Internacional. Porque é atrativo, disputado em pavilhão, belo e poderia representar até, se calhar, com mais emoção, o próprio futebol. A posição do COP é que acharia bem que o futsal e o futebol de praia viessem a integrar os Jogos Olímpicos.

Já fez referência aos anos em que foi presidente da Federação de Ciclismo, entre 1992 e 2012. Foi nesse período, em 2009, que foi inaugurado o velódromo de Sangalhos, em Anadia. Foi um projeto começado por si e que, este ano, levou à conquista de uma medalha de ouro e uma medalha de prata no ciclismo de pista nos Jogos Olímpicos. Como surgiu a ideia do velódromo? Era este o objetivo?
Eu não sou bruxo, nem tenho tendência nenhuma para isso! Eu sempre gostei muito de ciclismo, em particular de ciclismo de pista. Em 1992, quando cheguei à federação, Portugal não tinha uma posição nessa vertente que fosse sequer visível no estrangeiro, Portugal não existia, e eu quis imediatamente internacionalizar a modalidade e torná-la olímpica. Eu tinha a ideia de que o ciclismo de pista era uma atração e, para mim, era a menina dos meus olhos. Quando ia lá fora, aos Campeonatos do Mundo, passava a vida na pista e, quando acabava, ficava a pensar “mas porquê é que eu não posso ter umas rodas e empurrar a pista para Portugal?”. Era uma das minhas ambições.

Assim, como eu, a pedir, sou muito ambicioso, comecei a pensar em pedir. Esse pensamento ainda mais se arraigou em mim quando, em 1998, os Campeonatos do Mundo foram na Colômbia e eu vejo na pista uma medalha de bronze de um corredor de média categoria que tinha corrido aqui a Volta a Portugal pelo Boavista, um estrangeiro de leste, que não me lembro o nome. Isto reforçou aquilo que eu já pensava, que, de facto, tínhamos de ter uma pista. Por isso, comecei a bater à porta das pessoas.

Bati a 17 portas de câmaras. Como é evidente, a primeira pergunta que faziam era “mas quem é que me dá o dinheiro?”. Eu ia inventando maneiras de explicar que era possível. Já em desespero, porque já estavam quase a acabar os meus mandatos, fui ter à única câmara em que era possível considerar que havia pista, que era em Sangalhos. Uma velha pista que pertencia à Câmara Municipal de Anadia. Então, fui bater à porta e qual é o meu espanto quando me dizem que já tinham proposto algo para a pisto e que foi negado.

Hmm...
Eu já tinha falado várias vezes com o secretário de Estado de então, Laurentino Dias, e disse-lhes que íamos reconstruir a pista. Apresentámos um projeto que implicava cerca de 14 milhões de euros, em que ficaram todos a tremer. Mas, felizmente, naquela altura havia fundos da União Europeia, por isso agarraram-se a esses apoios. As questões continuaram a ser discutidas, mas foram aceites e começou a obra. Logo que começou a obra, eu ia duas vezes por semana a Anadia para ver as obras, nunca mais larguei o projeto. Fez-se a pista e cumpriu-se o orçamento.

A partir dessa altura, toda a gente dizia que eu era maluco, que aquilo tinha sido um desperdício de 14 milhões de euros, que era um elefante branco, que ia decair tudo, que era uma vergonha gastar este dinheiro, que não havia ciclistas de pista… posso dizer que eu, na véspera da inauguração, estava dentro da pista sozinho e as lágrimas começaram-me a cair, com medo, a pensar que, se realmente desse para o torto, vou ser sempre chamado sempre de louco.

...
Então, comecei a arranjar alguém que fosse trabalhar a pista. Fiz um concurso, apareceram quinze candidatos, escolhi o Gabriel Mendes e coloquei-o na UCI durante três ou quatro meses a tirar um curso intensivo de pista. Depois, segundo problema: não havia, de facto, corredores de pista. Naquela altura até se dizia que os corredores que fazem pistas estragam as pernas para a estrada. Era uma coisa louca. O que é que eu comecei a fazer? Comecei a convocar equipas e clubes pequenos, com jovens, com miúdos, que têm muita dificuldade de sobreviver, para provas na pista. Faziam provas de fim de semana e nós pagávamos um X a cada equipa, por cabeça de participação, por quilómetro de deslocação e pagava-lhes o almoço.

Conclusão, os próprios clubes já me perguntavam quando seria a próxima prova. Os miúdos estavam entusiasmadíssimos e, felizmente, apareceram os irmãos Oliveira [Ivo e Rui], o Iúri Leitão, entre outros, e cada vez aparecem mais. Hoje a pista está a dar grandes frutos, tem uma árvore em que, além de flor, dá frutos, só tem de ser regada. E isso é algo que eu já pus o dedo na ferida. Quando ganhámos a medalha de ouro, o primeiro-ministro estava ao meu lado e eu disse-lhe: “Atenção, a pista da Anadia tem 15 anos, qualquer dia é uma ruína, precisa de ser arranjada”.

E mais, temos de encontrar uma equipa técnica para trabalhar a pista com mais profundidade e de forma mais alargada, porque nós temos uma pista excelente no que diz respeito à resistência, mas temos de ter atletas de velocidade. Se desenvolvermos um trabalho como deve ser, temos capacidade para, daqui a oito anos, termos medalhas na velocidade também. É preciso é trabalhá-lo e ter um técnico para trabalhar a velocidade.

Falando de ciclismo, o Artur Lopes foi também presidente da Comissão Antidoping do UCI. O João Almeida disse, recentemente, em entrevista à Renascença, que os casos de doping no ciclismo português são uma mancha no currículo de muitos dos nossos jovens ciclistas, que, depois, quando chegam lá fora, são olhados com alguma desconfiança no World Tour. Esta é uma análise que lhe parece justa?
É uma preocupação. É uma análise correta, verdadeira e que tem de ser profundamente estudada. No entanto, tiro o chapéu a esta composição da Federação de Ciclismo, liderada pelo Delmino Pereira, porque, de há dois anos para cá, conseguiu uma coisa que eu sempre me bati para que acontecesse, que foi a criação do passaporte biológico obrigatório para todas as equipas profissionais, as equipas continentais, em Portugal.

O passaporte biológico é hoje a arma mais precisa para poder lutar contra o doping, porque aquela questão de tomar uma pastilha, urinar e ver-se no dia seguinte, isso já é das calendas gregas e não tem importância maior.

Acredita, por isso, que agora estamos no caminho certo?
Estamos, mas há que continuar, há que pressionar e há que não pensar que as coisas estão feitas.

Há algum problema de mentalidade em Portugal para que o problema do doping persista?
Todo o desporto de alta resistência, desde o esqui de fundo ao atletismo de fundo, todo ele, está em pé de igualdade nas malhas do doping, não tenhamos dúvidas. Temos de continuar a lutar contra ele. Sabemos que o ladrão anda sempre à frente da polícia, com novas técnicas e é a isso que temos de estar muito atentos.

Em Portugal, havia de facto a ideia do “temos de tomar alguma coisa para ajudar”. Isso estava muito enraizado, aliás, quando eu comecei a ser presidente da Federação Portuguesa de Ciclismo estava mesmo muito enraizada. Felizmente, isso foi mudando, mas, se calhar, ainda não tanto como seria desejável e como eu espero que seja no futuro.

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