11 jul, 2016 - 19:11 • José Bastos
A vitória no Europeu de futebol pode contribuir para a reconciliação com alguns fantasmas do passado colectivo, se é que o espectro da inferioridade ainda paira sob Portugal. A tese é de um dos mais reconhecidos pensadores portugueses contemporâneos, o professor Eduardo Lourenço.
O filósofo e ensaísta, que iniciou a sua relação com França em 1949, na Universidade de Bordéus, onde reside desde 1965, recusa, por outro lado, qualquer sentimento de vingança para com um país onde, sustenta, “os portugueses já não são actores secundários”.
O actual Conselheiro de Estado defende ainda que os portugueses são tão patriotas desde sempre que não necessitam do “suprimento de alma” da vitória no futebol para reforçar aspectos identitários.
Em tempos de universalidade do futebol, pode haver uma reivindicação da portugalidade na vitória de Paris?
Não há nos actores principais: o treinador, responsável máximo pela vitória, ou nos jogadores. Mas, de facto, os meios de comunicação voltaram a retomar esse tema que é filho do nosso antigo complexo de inferioridade.
Um complexo histórico e cultural rebatido agora como se fosse uma espécie de vingança, ou desforra, para com uma França que nos teria ofendido.
Tudo isso é um pouco absurdo. Agora não há dúvida alguma que a vitória é interessante para os portugueses que vivem em França. De facto, já não são actores secundários da vida francesa.
A nossa emigração é uma emigração de sucesso. Os portugueses estão muito integrados. Não emigraram para nenhuma colónia longínqua, mas sim para um país que se conhece desde que Portugal existe. Uma região privilegiada chamada França.
Mas há um contributo para o amor-próprio dos portugueses e para o reforço da sua identidade?
Os portugueses nem precisam desse contributo. Os portugueses são tão portuguesinhos, somos tão patriotas desde nascença até hoje que não precisamos deste tipo de suprimento de alma de uma vitória no futebol.
Mas, enfim, consola, sobretudo, num contexto europeu como é o de hoje. A Europa está numa grande carência de sentido para ela própria. Discute a sua própria identidade. Algo incrível. Nós, sim, podemos fazê-lo.
Somos um pequeno país que foi ilustre na história por tudo quanto sabemos. Mas ver a França discutir a sua própria identidade e ficar muito magoada por não estar à altura dos seus pergaminhos e da sua grandeza é um pouco triste.
Enfim, os meus filhos são franceses, a minha mulher era francesa, de maneira que poderia estar um pouco dividido, mas não estou.
Como seguiu a epopeia desportiva do torneio com toda a carga simbólica que arrasta?
Segui preocupado. Não totalmente convencido de que teríamos uma boa equipa. Tínhamos uma equipa mais ou menos como as outras, mas nada estaria garantido. Nada garantido nem para Portugal, nem para qualquer outra selecção, como se viu durante todo o campeonato.
Mas nós não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma acção para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis.
Houve sempre países hegemónicos que dominaram o panorama internacional. A Inglaterra, a França, a Rússia, de que não se fala muito. Acho que esta vitória no futebol foi um bom momento para uma reconciliação com os nossos complexos.
Esperemos que seja uma reconciliação longa e definitiva para curar os nossos complexos de inferioridade, se é que ainda os tínhamos. Alguns tinham. Outros não tinham.
Portugal tem o orgulho, mas, por outro lado, sente-se muito pequeno.
Esta vitória é relevante do ponto de vista anímico, de reencontro com a história, mas, muitos destes triunfos desportivos, não costumam resolver aos povos problemas de futuro...
Nada. Nenhum problema. Isto é uma espécie de milagre, mas a história de Portugal é constituída por uma série de milagres.
Não se sabe assim muito como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.
Mas esta é uma Europa em grave crise. O professor defende que o continente está confrontado com o sentido da sua própria História?
Sim, mas não no sentido do confronto ter lugar no interior da própria Europa. Foi sempre assim na história da Europa.
Somos herdeiros do Império Romano. Tanto a Europa do Sul, mais antiga que a outra, a nórdica, mais tarde a dominante depois dos tempos de Shakespeare.
A Europa está confrontada com o sentido da sua própria História mais no sentido da normalização da nossa relação – nos tempos modernos – connosco próprios.
Afirma que a Europa está confrontada com uma contestação, mais que tudo, de natureza quase cultural. Como sair daqui?
Como sair? Primeiro ter consciência de que o problema existe. Ter consciência de que há ameaças concretas, sobretudo, as que se traduzem pelo fenómeno do terrorismo. Outras ameaças sempre existiram.
A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa. Outros continentes têm menos história que nós exceptuando a Ásia que está na origem de tudo.
Neste momento a ameaça da Europa é uma ameaça cultural de um novo tipo. O que está em causa é o papel hegemónico desta Europa no mundo. É uma batalha cultural. Um ensaísta norte-americano (Samuel Huntington) diz que há uma luta entre civilizações, um choque de civilizações, uma batalha cultural. A História foi sempre isso. A História não é outra coisa.