20 jul, 2016 - 07:19 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Donald Trump é uma personalidade pública nos Estados Unidos quase desde a juventude. Mas era conhecido essencialmente como playboy e homem de negócios nova-iorquino, o que é substancialmente diferente de ser popular na América.
A sua popularidade só se tornou verdadeiramente nacional quando passou a apresentar o concurso em forma de “reality show” denominado “O aprendiz”, no qual desempenhava o seu próprio papel de gestor de empresas. Os concorrentes tentavam convencê-lo do potencial sucesso dos projectos empresariais que tinham concebido e quando não o conseguiam ouviam a frase que o celebrizou: “Estás despedido”.
Perante a América colou-se-lhe assim à pele a imagem de um patrão/gestor implacável, alguém que não tinha contemplações com os seus colaboradores sempre que eles cometiam algum erro.
Responsabilizar as pessoas pelos erros cometidos e fazê-las assumir as consequências é algo que está bastante entranhado na cultura americana, quer ao nível privado e empresarial, quer ao nível público, da administração e dos órgãos políticos. Accountability (responsabilização) é uma palavra que se ouve permanentemente na América e uma prática frequente.
Pois bem, esta terça-feira a campanha de Donald Trump decidiu ignorar por completo aquilo que o candidato andou a pregar durante anos no “reality show” que dirigiu. Depois de ter ficado evidente que houve plágio no discurso que a sua mulher, Melania, fez perante a convenção na segunda-feira à noite, a campanha entrou em modo de negação, tentando desviar as atenções para outros temas ou, pior ainda, tentando negar as evidências.
Os argumentos variaram de acordo com a imaginação do responsável da campanha. Uns disseram que a acusação era “absurda” porque apenas sete por cento do discurso coincidia com o de Michelle Obama na convenção democrática de 2008. Outros, como o próprio director da campanha Paul Manafort, disseram que tudo tinha sido montado pela campanha de Hillary Clinton que reage mal sempre que “alguma mulher lhe faz sombra”. Outros ainda que hoje é sempre possível ir buscar ao Google milhares de exemplos de discursos coincidentes sem que isso seja considerado plágio.
O que ninguém admitiu publicamente foi que tinha sido cometido um erro indesculpável e que a campanha devia pedir desculpa por ele. E embora tenha sido noticiado que Trump terá ficado furioso com o que aconteceu, todo o aparelho da campanha resolveu meter a cabeça na areia e passar adiante. O problema é que fora da campanha ninguém passou adiante e o tema dominou por completo o dia noticioso.
Ao contrário do que fazia no concurso, Trump não esclareceu o que se passou, não encontrou um responsável, não despediu ninguém. O próprio presidente do Partido Republicano, Reince Priebus, reconheceu que numa situação deste tipo “provavelmente” alguém deveria ser despedido.
Mas não foi. A própria campanha aumentou a confusão em torno do caso ao publicar um comunicado em que louvava os cuidados da equipa de autores do discurso, poucas horas depois de Melania ter dito a um repórter da NBC que tinha sido ela a escrever o discurso e tinha pedido muito pouca ajuda.
E se este foi o incidente que transformou o primeiro dia da convenção de um sucesso num pesadelo, não foi sequer o único. Com a indisciplina que lhe é peculiar, Trump decidiu falar pelo telefone para a Fox News exactamente à hora em que discursava no palco de Cleveland a mãe de um operacional morto em Benghazi. Quando o objectivo era que todas as atenções se virassem para aquele caso dramático, o candidato retirou-o de cena num canal noticioso.
Mais, interrogado sobre o contencioso que mantém com o governador do Ohio, John Kasich, que não vai comparecer na convenção do seu partido realizada no seu estado, Trump afirmou que foi ele que quis e insistiu para que a convenção se realizasse no Ohio para ajudar a economia do estado. Acontece que a cidade de Cleveland foi escolhida pela Comissão Nacional do partido como local da convenção em 2014, altura em que não havia ninguém na corrida para a Casa Branca…
Todos estes incidentes – se assim lhes podemos chamar – suscitam dúvidas sobre a capacidade organizativa da campanha e confirmam a ideia veiculada sob anonimato por alguns colaboradores de Trump de que reina a maior desorganização interna e amadorismo naquele aparelho. O que reflecte a personalidade do candidato, a sua permanente imprevisibilidade e gosto pelo improviso. Características que aparentemente não preocupam os delegados ao congresso, que ontem formalizaram com os seus votos a escolha de Trump para candidato oficial do partido à Casa Branca.
Trump Jr. com futuro
Salvo qualquer outra surpresa que possa surgir nas próximas horas, a segunda noite da convenção não parece ter produzido nenhum outro elefante na sala. Bem pelo contrário, produziu uma estrela que também se chama Donald Trump, mas é Júnior. O filho mais velho do multimilionário fez aquela que foi até agora a intervenção mais articulada e brilhante da convenção.
Muito fluente e eficaz, falou das qualidades do pai no contexto empresarial, mais do que familiar, e partiu daí para uma exposição notável da agenda conservadora que ninguém até agora tinha exposto tão bem neste congresso. Da política educativa baseada na liberdade de escolha das escolas para os filhos até às leis de regulação da actividade financeira, não lhe escapou quase nada.
Criticando o “excesso de regulação”, Trump Jr. acusou a lei Dodd/Frank, aprovada na sequência da crise financeira de 2008 e que visa regulamentar a actividade bancária, de ser um pesadelo para a economia com os seus 22 mil artigos. Soube evitar sempre especificidades excessivas para se fazer entender por todos, reclamando ter aprendido com o pai a confiar mais no bom senso das pessoas do que nos MBA que tiraram.
O pavilhão rendeu-se-lhe e no final não faltou quem exprimisse a opinião de que Trump Jr. está muito mais bem preparado para ser presidente do que o pai. Com 38 anos apenas, pelo que mostrou esta terça-feira essa bem poderá ser uma ambição a alimentar no futuro.
Um tribunal popular
Uma ambição que ficou pelo caminho foi a de Chris Christie, o governador de Nova Jérsia, que até à semana passada era o mais provável candidato a vice-presidente de Trump. Ele que foi procurador, subiu ao palco para fazer um ataque a Hillary Clinton em forma de acusação judicial e transformar o pavilhão em tribunal popular.
Enumerou aquilo que definiu como as responsabilidades da ex-secretária de Estado em vários conflitos no mundo e em cada um deles perguntou ao auditório se ela era culpada. Líbia, Síria, Nigéria, Irão, Rússia, China, Cuba, foram os citados. Hillary tornou-se assim culpada pelo caos na Líbia e na Síria, pelo rapto de duas centenas de raparigas na Nigéria, pelo acordo nuclear com o Irão, pelo apoio ao “ditador” russo, pelo dinheiro pedido à China para “financiar as despesas na América” e pela abertura a Cuba.
Pouco importou a Christie que o rapto das raparigas nigerianas, o acordo nuclear com o Irão ou a abertura a Cuba tenham ocorrido já depois de Hillary Clinton ter deixado o Departamento Estado. Como pouco lhe importou que Trump tenha mostrado admiração pelo “ditador” russo. São pormenores irrelevantes face a um tribunal popular que exultava de cada vez que sentenciava “culpada” e onde muitos “juízes” gritavam “prendam-na, prendam-na” a plenos pulmões.
O que verdadeiramente parece ter importado a Christie foi a sua demonstração retórica de que ele devia ter sido o escolhido para vice-presidente. Ele é que era afinal a escolha do coração de Trump e ele é que seria o “cão de ataque” que o candidato queria para fustigar Hillary daqui até Novembro. Falta ainda ver a prestação de provas de Mike Pence, mas a de Christie foi, sem dúvida, convincente. Demasiado tardia, porém, para quem ambicionava ser vice-presidente.
Uma última nota para lembrar que o tema desta segunda noite da convenção era “pôr a América a trabalhar de novo”. Acontece que nenhum dos oradores que subiram ao palco em “prime time” se referiu ao assunto do dia. Não houve uma única intervenção dedicada à situação económica ou laboral do país, salvo referências dispersas e muito pontuais em alguns discursos. Um outro indicador da descuidada preparação deste congresso.
Talvez ninguém se tenha voluntariado para dizer mal de uma situação económica cuja taxa de desemprego se situa nos 4,9%; que tem criado uma média de 300 mil empregos por mês quando em 2008 perdia 800 mil por mês; que há sete anos consecutivos que cresce e vai acelerar em 2017; em que os preços das casas que estiveram na origem da recessão de 2008 voltaram a subir; e cujas reservas de petróleo ultrapassam já as da Arábia Saudita e as da Rússia.