27 jul, 2016 - 08:51 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
E ao segundo dia tudo correu de acordo com o guião, que o mesmo é dizer tudo correu sobre rodas, que o mesmo é dizer tudo correu na perfeição. Depois de um primeiro dia atribulado, a convenção democrática encontrou na terça-feira o tom que pretendia para consagrar Hillary Clinton como a primeira mulher candidata a presidente dos Estados Unidos.
Um acontecimento histórico que fica a marcar o Partido Democrático e ficará a marcar o país se ela vencer em Novembro. Depois de ter colocado na Casa Branca o primeiro presidente negro, poderá agora eleger a primeira mulher para o cargo mais poderoso do mundo.
A encenação foi perfeita, algo em que os americanos são mestres, como sabemos, desde a forma como decorreu a votação dos delegados durante tarde até ao “grand finale”, passando pelo contributo de Bernie Sanders para unir o partido e sossegar as suas hostes.
Mas se porventura tivesse havido algum deslize, Bill Clinton tê-lo-ia ofuscado por completo no discurso que fez a encerrar o dia. Orador brilhante, Bill foi o melhor advogado da causa da mulher, desfiando a história dos 45 anos em que estão juntos, que foi desde episódios de namoro até à actividade política mais intensa.
Bill não faz discursos, conversa com o auditório. E nesta conversa houve um pouco de tudo. Os embaraços dos primeiros tempos de namoro, as três vezes que Hillary recusou as propostas dele para casar, as advertências que lhe fez para os riscos que correria se casasse com ele, o nascimento da filha, a sua actividade como professora de direito e advogada, a partilha das vitórias e derrotas eleitorais dele, o trabalho na Casa Branca como primeira-dama a lutar pela aprovação de um sistema de saúde, a batalha pelos direitos das mulheres e das crianças, o empenho como senadora de Nova Iorque no pós 11 de Setembro, a política externa enquanto secretária de Estado, nomeadamente na paz em Gaza, nas questões climáticas e nos direitos das mulheres na China e noutras partes do mundo.
Bill Clinton descreveu-a como alguém cuja vida inteira tem sido lutar para mudar as vidas dos outros, para melhorar a vida de todos e que nunca se conforma com aquilo que conquista. “Ela acha sempre que é possível fazer mais e melhor. Trabalha incansavelmente para melhorar as coisas e é isso que fará na Casa Branca, podem ter a certeza. Ela é uma transformadora que nunca parou de mudar as coisas sempre que desempenhou um cargo”.
E esta é, segundo Bill, a “verdadeira Hillary” que contrasta em absoluto com a Hillary “forjada”, “inventada”, de que os republicanos falaram na semana passada em Cleveland. Eles inventaram uma “caricatura”, um “cartoon”, porque a sua vida de transformadora os incomoda e assusta. Está nas mãos dos americanos escolher entre a “verdadeira Hillary” ou a “inventada” pelos adversários.
A apoteose provocada pelo talento oratório de Bill Clinton teve sequência numa pequena apresentação de Meryl Streep, que, num vestido com as cores da bandeira americana, sublinhou o carácter histórico da nomeação de Hillary, na linha de inúmeras mulheres pioneiras em vários domínios cujos nomes citou.
A culminar a noite, a própria candidata apareceu numa curta mensagem video a agradecer a nomeação que simbolicamente começou com o estilhaçar de um tecto de vidro – mais uma barreira ultrapassada, neste caso para as mulheres.
Um presente para Putin
E esta noite de terça-feira, à excepção de Bill Clinton, foi a noite das mulheres. Para além de várias senadoras que usaram da palavra, a antiga secretária de Estado Madeleine Albright subiu ao palco para elogiar o desempenho de Hillary no cargo que ela conhece bem porque o exerceu nos anos 1990. Disse que gerir a política externa “não é como fazer um programa televisivo”, numa indirecta a Donald Trump, que acusou de já ter posto em perigo a segurança do país e do mundo ainda enquanto candidato.
“Deixou cair aliados e encorajou ditadores”, afirmou Albright, referindo-se à ameaça de Trump de não defender países da NATO perante uma eventual invasão se não tiverem pago a sua parte para a defesa da Aliança Atlântica e o quanto isso pode encorajar aventuras militares por parte da Rússia. “Uma vitória de Trump seria um presente para Putin”, alertou, invocando o seu passado na antiga Checoslováquia, donde a sua família é proveniente, para rematar: “sei o que é dar luz verde aos russos” e o quão perigoso isso pode ser. “Trump tem uma grande admiração por ditadores e isso deve preocupar o povo americano”.
Mas o momento mais emotivo da noite foi talvez a vinda ao palco de um grupo de mães que perderam os filhos vitimados por violência policial ou por gangs ligados ao tráfico de droga. Todas negras, estas mulheres contaram da sua dor imensa com grande dignidade, sem exprimir qualquer ódio ou culpabilizar alguém em particular. Uma delas disse mesmo que “a esmagadora maioria dos agentes policiais são boas pessoas e desempenham bem o seu ofício”, mas não é obviamente um acaso todos os casos serem de jovens negros que perderam a vida.
No pavilhão explodiu a palavra-de-ordem “Black lives matter” (as vidas dos negros contam) que tem dado voz aos protestos contra a violência policial, enquanto as mães no palco reclamavam mais justiça e elogiavam Hillary Clinton por ter sido a única responsável política que as tinha escutado e se tinha preocupado com a situação delas. A única que tem um plano para pôr a polícia a interagir com as comunidades que serve, para reformar o sistema judicial e para controlar o porte de armas. Na plateia havia lágrimas nos olhos de alguns delegados.
E foi também com algumas lágrimas furtivas que Bernie Sanders e a mulher receberam a votação dos delegados que, durante a tarde, nomeou Hillary Clinton como candidata oficial do partido. O senador pediu que o Vermont ficasse para o fim da votação e quando todos os votos estavam contados, pegou no microfone junto dos delegados do seu estado, confessou-se emocionado com o processo e apelou a que se ignorassem as regras e se proclamasse logo ali por aclamação a escolha de Clinton como a candidata à Casa Branca. A mesa procedeu em conformidade.
Foi outro momento de apoteose que selou o fim da caminhada de Sanders nas primárias e contribuiu para congregar os seus apoiantes em torno da candidata oficial.
Para esta quarta-feira, terceiro dia da convenção, estão previstas as intervenções do presidente Barack Obama, do vice-presidente Joe Biden, do candidato a vice-presidente Tim Kaine e de Michael Bloomberg, ex-mayor de Nova Iorque, um independente que vai dar o seu apoio a Hillary.