29 jul, 2016 - 09:45 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Hillary Clinton saiu esta quinta-feira à noite da convenção democrática de Filadélfia com uma dupla responsabilidade histórica: não só fazer-se eleger para se tornar a primeira mulher a chegar a presidente dos Estados Unidos, mas também fazer-se eleger com o programa mais à esquerda que algum candidato democrata já apresentou desde George McGovern em 1972.
Não é tarefa fácil. Mas a etapa da convenção foi cumprida com sucesso. Hillary encerrou o congresso com um discurso muito eficaz em que começou por agradecer a Bernie Sanders por ter trazido jovens para a campanha, mas sobretudo temas económicos e de justiça social, agora consagrados no seu programa de candidata à Casa Branca. “A tua causa é a nossa causa. O país precisa das tuas ideias, porque é com elas que vamos mudar a nação”, disse Clinton.
Estava dado o mote para o enumerar das medidas com que Hillary se propõe governar e que vão do aumento do salário mínimo ao obrigar Wall Street a pagar a sua quota justa de impostos para financiar os programas sociais de que a América precisa. Entre muitas, não se esqueceu de referir a necessidade de rever os acordos comerciais que “prejudicam os trabalhadores americanos”, vulgo TPP; nem de obrigar as empresas que se deslocalizam para o estrangeiro a compensar os contribuintes por essa opção; nem de acabar com as propinas para os estudantes de famílias com menores rendimentos; nem de garantir a igualdade salarial entre homens e mulheres.
O tom de todo o discurso foi de grande optimismo e confiança nas capacidades dos americanos para corrigir o que está mal e melhorar o país. Um país que continua a atrair milhares que sonham em construir uma vida decente e próspera, um país onde não interessa de onde se vem, mas o que se quer atingir.
Um contraste absoluto com o que disse Donald Trump na semana passada em Cleveland e na esteira do que disse o presidente Obama há dois dias. “Não acreditem nunca em quem vos disser que pode reparar os males do país sozinho. Os americanos não dizem ‘vou reparar isto’, dizem sempre ‘vamos reparar isto juntos’”.
Elogiou o sentido de comunidade dos seus compatriotas e lembrou que a própria Constituição americana foi redigida com uma preocupação essencial em mente – não atribuir demasiado poder a um só homem. “Nunca seremos uma nação onde um só homem tem todo o poder”, advertiu.
Estratégia contra o jihadismo
Foi, aliás, nos ataques a Trump que Hillary teve os melhores momentos do discurso. Acusou o multimilionário de ter arruinado muita gente que subcontratou para o negócio dos casinos em Atlantic City, onde abriu falência e mesmo assim ganhou muito dinheiro. Apontou a sua incoerência por proclamar que quer pôr a América à frente mas fabricar no estrangeiro muitos dos produtos que vende com a sua marca como gravatas, fatos, mobílias, etc.
Mas seria nas questões de segurança e defesa que Clinton seria mais dura. Quanto à segurança disse que o país “não pode ter um presidente que está no bolso do lobby das armas”, uma referência à NRA, National Riffle Association, que apoia oficialmente Trump e que financia campanhas e candidatos que se comprometem a não aprovar quaisquer leis para restringir o uso e porte de armas.
Quanto à defesa, citou Trump quando ele disse que percebia mais do ISIS (Estado Islâmico) do que os generais. Fixando o ecrã, disparou: “Não, não percebes!”, e desfiou as medidas que preconiza para combater o terrorismo: bombardear os seus santuários, apoiar e treinar as tropas que o combatem no terreno, melhorar a vigilância sobre o grupo, secar as suas fontes financeiras, entre outras.
E contestou veementemente a alegada vulnerabilidade das Forças Armadas americanas, de que Trump costuma falar. “Os nossos militares são os melhores do mundo, são o nosso tesouro, é neles que depositamos a nossa segurança e a nossa confiança”.
Argumentos com que Hillary quis demonstrar a impreparação de Trump para ser comandante-em-chefe, acrescentando-lhe outro de carácter temperamental. “Como podemos confiar a um homem que se irrita com um tweet o botão nuclear do país?”. A sala explodiu em aplausos.
Trump, o candidato da escuridão
Tal como já tinha aplaudido entusiasticamente o general John Allen, um marine reformado que comandou as tropas no Afeganistão, quando ele subiu ao palco acompanhado por 27 outros veteranos de guerra para um libelo acusatório a Donald Trump, de quem disse representar “as forças da escuridão”.
O general começou por afirmar que o que estava em causa nestas eleições era demasiado grave para os militares ficarem calados. Recordou que a Constituição garantia a igualdade de todas as raças, todos os credos, todos os géneros e que esses eram os valores que fazem com que todo o mundo olhe para a América como a pátria da liberdade.
Garantiu que as Forças Armada são fortes, vão derrotar o ISIS e qualquer outra ameaça que surja, porque representam “um luminoso exemplo de garantia de paz no mundo” que os inimigos temem e em que os aliados confiam. E neste aspecto disse que “as relações internacionais não podem ser reduzidas a uma transacção negocial”, numa alusão às recentes afirmações de Trump sobre os países aliados da NATO a quem não protegeria se não pagassem a sua quota-parte para a defesa.
Por fim, John Allen assegurou que as Forças Armadas não serão compelidas a cometer ilegalidades como tortura, assassinatos selectivos ou bombardeamentos indiscriminados, violando as leis internacionais da guerra. Tudo práticas que Trump já defendeu como formas de combater o terrorismo.
Pai muçulmano recebe chuva de aplausos
Mas se este foi um dos momentos mais fortes da noite, sobretudo porque visou responder aqueles que acusam os democratas de serem fracos nas questões de defesa, houve outro bastante mais tocante e também relacionado com a luta antiterrorista. Foi protagonizado pelo pai de um capitão morto no Iraque num ataque de um carro armadilhado que tentou deter, mandando recuar a sua companhia. Khan, de seu nome, morreu como um herói e foi condecorado postumamente pela sua coragem.
Khan era muçulmano, tal como toda a família, e o seu pai foi a Filadélfia dizer que eram “orgulhosos muçulmanos americanos”. “Acreditamos na América, a terra onde os meus três filhos cumpriram os seus sonhos”, incluindo o que morreu no Iraque porque sonhava ser militar.
“Se Trump fosse presidente, não estaríamos na América porque ele nos desrespeita e quer banir-nos do país”, disse este pai, para se dirigir directamente a Trump e perguntar se ele alguma vez tinha lido a Constituição dos EUA. E foi ao bolso, tirou um exemplar e disse que lha oferecia para que ele percebesse o que significam a liberdade e a igualdade perante a lei.
Instou o candidato republicano a ir aos cemitérios ver como gente de todos os credos morreu a defender a pátria. “Você nunca sacrificou nada, nem ninguém pelo país”, disse com mágoa, num tom sereno, pausado, para acabar a pedir a todos que não encarem esta eleição com ligeireza. A sala, emocionada, tributou-lhe uma das maiores ovações da noite.
Talvez este pai muçulmano não saiba que o seu convite simbólico a Trump para que leia a Constituição do país poderá não estar tão afastado da realidade como se pensa. Há cerca de um mês, Trump foi ao Congresso para uma reunião com os eleitos pelo Partido Republicano para os tentar convencer a apoiar e a empenhar-se na sua candidatura.
Nesse encontro, segundo a imprensa, o candidato foi questionado sobre a sua determinação em cumprir todos os artigos da Constituição e respondeu afirmativamente, dizendo algo como “todos, o primeiro, o terceiro, o décimo, o décimo segundo, todos, claro”. Acontece que a Constituição americana só tem sete artigos…
Muitos dos congressistas que escutaram Trump ficaram perplexos e a reunião não teve grandes resultados em termos de conquista de apoios. Mas se entre os eleitos há relutância, entre outros republicanos há oposição clara ao candidato.
Trump não é Reagan
Nesta última noite da convenção, um assessor do presidente Ronald Reagan contestou a ideia que por vezes a campanha veicula de que há semelhanças entre o actual candidato e o antigo presidente.
Doug Elmets disse: “Conheci Ronald Reagan, trabalhei com Ronald Reagan, Trump não é nenhum Ronald Reagan”. Usou uma fórmula que ficou célebre num debate em 1988 quando os dois candidatos a vice-presidente se defrontaram. O republicano era o senador Dan Quayle, que tinha alguma semelhança física com o presidente Kennedy e cultivava essa imagem de jovem dinâmico que iria contribuir para renovar a América. O candidato democrata era um velho senador experiente e prestigiado, Lloyd Bentsen que, a certa altura do debate, quando o tema Kennedy surgiu, disparou para Quayle: “Eu conheci Jack Kennedy, trabalhei com Jack Kennedy, fui amigo de Jack Kennedy. Você não é nenhum Jack Kennedy, senador”. O debate ficou resolvido logo ali.
Doug Elmets não se limitou à célebre fórmula de Bentsen. Deu exemplos para distinguir os dois homens. Reagan disse a Gorbachev quando foi a Berlim “derrube este muro, senhor Gorbachev”, enquanto Trump quer construir um muro. Reagan apostou sempre na diplomacia e teve vários sucessos diplomáticos, incluindo tratados de desarmamento com a URSS. Trump despreza a diplomacia e só fala em bombardear os inimigos.
A plataforma política de Trump é anti-tudo, anti-gays, anti-imigrantes, anti-mulheres, por isso este antigo assessor de Reagan vai votar democrata pela primeira vez na vida. “Ponham o país à frente do partido”, apelou aos seus correligionários republicanos. Os rivais democratas aplaudiram com exuberância na expectativa de que, em Novembro, alguém ainda se lembre do apelo.