21 set, 2016 - 06:20 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
“Da minha língua vê-se o mar”. Foi com a conhecida e lindíssima citação de Vergílio Ferreira que o Presidente da República encerrou na terça-feira ao fim da tarde (quase madrugada em Portugal) o seu discurso perante a 71ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque.
Dificilmente Marcelo Rebelo de Sousa poderia ter encontrado citação mais adequada porque, de facto, o mar e a vocação marítima de Portugal foram o fio condutor da sua intervenção. Um mar que une e não que divide, um mar visto e sentido pelos portugueses como ponte e não como obstáculo intransponível. Por isso, o Presidente saudou a realização da primeira cimeira da ONU sobre mares e oceanos a realizar já no próximo ano, que considerou prioritária.
Desta imagem partiu para falar sobre a abertura de Portugal ao mundo traduzida no seu compromisso com o multilateralismo que é apanágio das Nações Unidas. E deu vários exemplos do empenho do nosso país nas missões internacionais para ajudar a garantir a paz em zonas turbulentas do mundo.
As missões de vigilância contra o narcotráfico e a pirataria no golfo da Guiné, a colaboração na pacificação do Mali e da República Centro-Africana, o empenho na restauração da democracia na Guiné-Bissau e a futura colaboração no processo de paz interno da Colômbia para o qual anunciou que iriam efectivos portugueses, foram alguns desses exemplos.
A abertura ao mundo traduz-se também no facto de Portugal ter acolhido o dobro dos refugiados sírios que lhe foram atribuídos pelas quotas da União Europeia, sublinhou o Presidente, para alertar para a necessidade de garantir o ensino às crianças e aos jovens forçados a abandonar os seus países de origem.
Uma alusão à iniciativa do antigo Presidente Jorge Sampaio que promoveu a integração de muitos estudantes sírios em universidades portuguesas, iniciativa que Sampaio tem dado a conhecer em encontros paralelos aqui em Nova Iorque no âmbito da cimeira dos refugiados. Marcelo invocou a sua qualidade de professor universitário para dizer que ele próprio tinha dado aulas a estudantes sírios.
Como Ghandi e Mandela
Na mesma lógica de abertura ao mundo, Marcelo Rebelo de Sousa referiu-se, naturalmente, ao processo de selecção do novo secretário-geral da ONU, manifestando a expectativa de que a pessoa escolhida tenha qualidades humanas que lhe permitam ser um congregador de espíritos e de vontades, um construtor de pontes, capaz de promover a tolerância e o diálogo entre todos. E citou expressamente os exemplos de Mahatma Ghandi e de Nelson Mandela.
António Guterres, que assistia ao discurso de Marcelo ao lado do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, talvez tenha pensado que o Presidente estava a colocar a fasquia muito alta. Mas o entusiasmo de Marcelo com a candidatura de Guterres a secretário-geral das Nações Unidas é indisfarçável. O próprio chefe de Estado disse aos jornalistas que não há um único encontro bilateral em que não fale do candidato português.
Marcelo reiterou ainda o compromisso de Portugal com os princípios da Carta das Nações Unidas, falou da visão humanista do mundo, do desenvolvimento sustentável, do combate à pobreza, dos direitos humanos, mas pôs uma ênfase particular na questão da luta contra a droga, defendendo a prevenção.
Não o fez por acaso. A abordagem portuguesa ao problema da droga como uma questão de saúde e não como uma questão criminal tem merecido a atenção de inúmeros países do mundo e ainda no passado mês de Abril decorreu na ONU uma cimeira sobre o assunto em que isso ficou patente. Encarar o dependente da droga como um doente e não como um criminoso é uma atitude que cada vez mais países adoptam para lidar com o flagelo.
Essa cimeira, tal como o acordo de Paris sobre o aquecimento global e a cimeira humanitária sobre os refugiados foram dados pelo Presidente da República como momentos altos do multilateralismo que caracteriza a ONU.
Líderes mundiais na sala ao lado
Ironicamente, a cimeira sobre os refugiados que começou na segunda-feira e prosseguiu na terça, acabou por retirar protagonismo à sessão solene da abertura da Assembleia Geral. Durante a tarde de terça-feira, os líderes mais destacados que compareceram em Nova Iorque foram mobilizados para a iniciativa paralela e não propriamente para a Assembleia Geral.
Quando Marcelo Rebelo de Sousa discursava, na cimeira paralela subia ao palco o Presidente francês, François Hollande. E por lá passaram na mesma tarde a primeira-ministra britânica, Theresa May, o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, entre vários outros.
No mais, Marcelo reiterou as opções habituais de Portugal na política externa. Condenou veementemente o terrorismo, as tensões na península coreana, mas sem mencionar sequer a Coreia do Norte, e apelou ao fim do conflito israelo-palestiniano com base na solução dos dois estados a viver lado a lado em paz e segurança.
Num mar nunca dantes navegado pelo Presidente recém-eleito, Marcelo esteve ao seu melhor nível. Da sua língua viu-se, de facto, o mar.